Este pequeno texto, publicado no Diário de Lisboa, em 1921, é uma pertinente incursão literária de Almada Negreiros sobre os 11 anos imediatamente anteriores à sua redacção. A sala encarnada é, no fundo, um país chamado Portugal, à deriva entre regimes.
O Que Se Passou Numa Sala Encarnada
Era uma vez uma grande sala que parecia uma sala de visitas, mas que, reparando melhor, era mais do que uma sala de visitas. O chão era de veludo encarnado de gala, o tecto cheio de doirados às voltas e aos caprichos, com anjinhos e fitas de boa seda a óleo, as paredes cobertas de damascos luzidios e grandes retratos de homens e senhoras salientes. Ao fundo havia uma grande janela rasgada sobre a melhor praça da cidade. Os móveis resumiam-se a oito belos fauteuils, um dos quais valia mais do que os outros e estava em cima de um estrado com degraus virado para os outros sete fauteuils.
Das duas, uma: ou esta sala servia para alguma coisa, ou já não servia para nada. Em todo o caso via-se perfeitamente que a idade daquela casa vinha de há muito atrás.
Ora naquele dia eu não tinha nada combinado, de modo que podia ficar ali à espreita.
Na rua, os que passavam tinham exactamente para onde ir, estava tudo ocupado, tanto melhor para mim, para espreitar mais à vontade. Vi os retratos um por um, e os fauteuils e os tecidos pelas cortinas e paredes. A certa altura pareceu-me ouvir qualquer coisa; depois ouvi passos com certeza e fui pôr-me por detrás dos veludos que guardavam o fauteuil que estava em cima do estrado. O que então eu vi não é vulgar, e por isso mesmo terei prazer de vo-lo contar, mas previno que o quarto de hora que estive no meu esconderijo pode parecer desmentir a quantidade de séculos que os meus olhos estiveram a ver passar. Tanto se me dá que me acreditem ou não, eu também já fui daqueles que julgam que não há nada de novo neste mundo, e que tudo quanto existe é só o que se vê com os olhos da cara.
Passo a contar:
O ruído começou na praça que se via através a janela. Muito povo, carros puxados a muitas parelhas, muita tropa, muita música e um carro especial com mais parelhas do que os outros e em oiro. Depois abriu-se uma porta da sala por onde entraram muitas mulheres especiais e homens vestidos de todas as cores, até de encarnado e meias brancas, como no teatro. A sala encheu-se depressa. Depois abriram alas para deixarem passar uma pessoa que parecia ainda nova e masculina, com uma coroa pesada à cabeça e uma faixa muito bem passada a ferro.
Todos se ajoelharam quando ele passava. Abriram a janela. Lá em baixo estava o povo guarnecido com tropa e cavalos. Ele tirou a pesada coroa da cabeça e mostrou-a ao povo. Foi um delírio. E indescritível a alegria de todos naquele momento, alguns choravam. Depois fecharam a janela e ficaram sós na sala o rapaz que levava a coroa e mais sete homens escolhidos e de muito mais idade que ele. Este sentou-se no fauteuil que estava em cima do estrado e os sete sentaram-se em cada um dos sete fauteuils. Falavam baixinho e medido. Um deles pôs-se de pé e confessou que não estava nada bem-disposto hoje. Foi aprovado por aclamação.
De repente, sem ninguém esperar, ouviu-se grande ruído de cavalos e muita gente na praça, depois tiros e detonações várias, e quase ao mesmo tempo foi arrombada a porta da sala por onde entrou toda a gente que quis lançar da janela à praça os sete homens de idade e o rapaz da coroa pesada. No meio da praça já estavam oito forcas à espera deles. Depois a sala ficou vazia e com a janela escancarada, por onde se viam oito enforcados. Ao lado das forcas o movimento era parecido com o que já tinha havido antes de terem entrado na sala pela primeira vez: muito povo, carros puxados a muitas parelhas, muita tropa, muita música e um carro especial com mais parelhas do que os outros e em oiro. A seguir, a porta abriu-se de novo de par em par. Entrou muita gente que, se não era a mesma de ainda há pouco, estava, porém, vestida com os mesmos fatos. A sala encheu-se depressa. Depois abriram alas para deixarem passar um velhinho sentado numa cadeira de rodas, com uma faixa muito bem passada a ferro. Não tinha coroa pesada na cabeça.
Abriram a janela. Lá em baixo estava o povo guarnecido com tropa e cavalos. O velhinho levantou com custo uma mão e foi o delírio entre o povo. E indescritível a alegria de todos naquele momento; alguns choravam. Depois fecharam a janela e ficaram sós na sala o velhinho e mais sete homens escolhidos. Sentaram-se nos respectivos fauteuil. Um deles confessou que não estava nada bem-disposto hoje. Foi aprovado por aclamação.
De repente, sem ninguém esperar, ouviu-se grande ruído de cavalos e muita gente na praça, depois tiros e detonações várias, e quase ao mesmo tempo foi arrombada a porta da sala por onde entrou toda a gente que quis lançar da janela à praça o velhinho e os sete homens escolhidos. No meio da praça ainda estavam oito forcas de ainda há pouco, e em cada uma delas foram enforcados com os outros, o que já fazia dois em cada forca.
Mas na praça, apesar do aspecto lúgubre dos enforcados, reinava franca alegria. Soldados e povo abraçavam-se comovidos e cantavam hinos em coro. Em seguida entraram todos à uma, povo e soldados, pela sala dentro, sem distinções; uns chegavam primeiro do que outros e sentavam-se aos magotes em cada fauteuil ao calhar, à vez. A dado momento, quando era cientificamente impossível a sala e os fauteuils meterem mais gente, houve alguém que num grande gesto impôs o silêncio a todos. Todos se calaram. Era para dizer que não estava nada bem-disposto hoje. Foi aprovado por aclamação.
Estes factos davam-se exclusivamente na capital, e a província apenas tinha conhecimento deles pelos jornais.
José de Almada Negreiros, 1921
Muito bem. Já no outro dia aqui se publicou um texto demonstrativo de que Amadeo Sousa Cardoso era monárquico. É preciso. Estes malandros apropriam-se de tudo e de todos. Tanto do património da Casa de Bragança como, até, das ideias do meu biografo. E desse posso dizer que não gostava de pulgas nem de republicas.
ResponderEliminarFantástico texto, Almada Negreiros foi um dos expoentes máximos da nossa literatura, e então aqueles poemas como a Cena do ódio e o manifesto anti Dantas, simplesmente brilhante, muito à frente do seu tempo Almada.
ResponderEliminarTenho ideia que Almada tinha simpatias pelo fascismo, era natural que fosse sidonista naquele tempo. Em todo o caso a sátira revela duas coisa, uma é o rotativismo entre regimes e governos, no fundo mais do mesmo; outra é a circularidade da história, que parece repetir-se em ciclos mais ou menos duradouros.
Eu no fundo tornei-me um pouco como Almada, perdi a minha fé, só espero que um dia a reencontre...
Extraordinária pequena alegoria; de contar aos netos.