sexta-feira, 30 de maio de 2008

O parlamento, vítima da propaganda republicana

Um dos grandes e mais repetidos equívocos que há sobre o significado e as consequências da propaganda republicana em Portugal (1860-1910) é que esta teria atacado essencialmente a monarquia, querendo preservar grande parte do edifício liberal. Ora, a propaganda republicana fez-se contra todas as instituições do regime: a monarquia, as Cortes (não só a Câmara dos Pares), o sistema judicial, a Universidade, a Igreja estabelecida, etc. As Cortes e, em particular, a Câmara dos Deputados, eram a instituição mais visada pela imprensa republicana, que tudo fez para as desacreditar junto da opinião pública, criando uma percepção generalizada da política parlamentar e dos seus naturais conflitos como uma "nojice" e um "escândalo sedicioso" que impedia a unidade nacional. Essa atitude era necessária para menorizar a ampla liberdade política que se vivia no País, incompatível com a suposta necessidade de uma revolução republicana para a conquistar.

É isso que explica que, após 1910, as primeiras eleições realizadas pela I República (em 1911) tenham sido o que de mais parecido houve antes de Salazar com umas eleições de partido único: os candidatos eram todos republicanos e uns poucos de socialistas foram convidados a participar. Depois, o partido republicano partiu-se em facções, para grande pena dos saudosos do tempo da propaganda, e criou-se uma ilusão de pluripartidarismo semelhante ao que existia antes de 1910. Nesse cadinho de desiludidos da "unidade republicana" se forjou a esperança numa União Nacional que "varresse" os partidos, como o 28 de Maio de 1926 (todo feito por republicanos), veio a permitir. Os republicanos, afinal, quando lhes coube moldar o País à imagem das suas ilusões, montaram a caricatura que construíram para denegrir a monarquia constitucional e o seu parlamento. Ironias da história.
[Publicado no L&LP em Julho de 2005.]

Croniqueta republicana (7): Relvas estrumadas

Da leitura em diagonal das Memórias Políticas de José Relvas, decidimos retirar mais alguns valiosos contributos para o melhor conhecimento daquilo que foi o regime saído do golpe de 1910, assim como das questíunculas, ódios e irresponsabilidade política e moral dos seus principais dirigentes.
Sendo Relvas geralmente apontado pelos panegiristas do regime da Demagogia, como uma inatacável personalidade eivada de todo o tipo de qualidades políticas, morais e intelectuais, os seus escritos deverão ser encarados como honestos testemunhos da situação imposta pela violência a um país coagido pela coacção física e propagandista.

Já na fase pós-sidonista, Relvas parece esquecer-se da feroz luta contra a "ditadura" administrativa de Franco (1906-08) e assim, declara em 1919 ..."como pode o Governo com o actual Parlamento que já não representa a vontade nacional, visto que o País aceitou o meu Ministério, não só sem resistências, mas até com aplauso? Foi por isso que eu fiz na entrevista um apelo ao Parlamento para nobremente votar o princípio da dissolução e uma nova lei eleitoral, elaborada com o consenso dos partidos, deixando entrever que se a vida do executivo ainda fosse possível com as actuais Cortes iríamos até ao momento em que novas eleições constituíssem uma necessidade inevitável para a formação dos dois novos e grandes partidos, base duma tranquilidade, que não conhecemos há muito tempo".

Este parágrafo remete-nos de imediato à famosa entrevista dada pelo rei D. Carlos ao Temps, em que os pressupostos para a normalização da vida pública, tinham como ponto central a formação de dois partidos constitucionais verdadeiramente alternativos - o governo "à inglesa" - e à elaboração de um novo sistema eleitoral mais equilibrado. Mais de uma década decorrida e num cenário de indescritível desordem pública, miséria económica e clara, embora camuflada derrota militar na I Guerra Mundial,Relvas parece pretender ressuscitar o plano de João Franco, num momento em que a dissolução do regime já se tornara inevitável.

Continuando, o autor escreve que ..."acentua-se a campanha da dissolução em termos da maior violência. Hoje, na Câmara, quando se começava a discutir o projecto a que me referi na carta de ontem, o Francisco Fernandes afirmou que tal projecto, recordando o decreto de 31 de Janeiro, de João Franco, o excedia todavia nas autorizações arbitrárias que concedia ao poder executivo. Devo dizer-lhe que não é muito grande a correcção do dr. Fernandes e o seu espírito de transigência, não hesitando em aprovar o projecto desde que ele contivesse a restrição das autorizações concedidas apenas ao actual Governo". Por outras palavras, é a "ditadura!

A guerrilha entre os caciques republicanos, vai enrubescendo de fulgor e assim, ..."o Cunha Leal - comediante-tragediante sabendo que o Parlamento já não existia, resignou o seu mandato de deputado perante o comício. E acrescentou que, se o Governo não decretasse a dissolução, convocava desde já o povo para dissolver o Governo!" Foi esta a gente de alegados elevados princípios de rectidão moral que quis governar o país. Continuando, vai escrevendo que ..."esse farsante subiu as escadas do Ministério do Interior, acompanhado de populares, que a breve trecho entravam violentamente no meu gabinete, armados com pistolas e espingardas, invectivando-me e não me tendo morto, graças à oportuna e enérgica intervenção de Tito de Morais (...) entretanto, nas Ruas do Ouro e dos Capelistas continuava o tiroteio com a polícia, obrigada a defender-se dentro já da esquadra do banco de Portugal. Havia mortos e feridos. O primeiro polícia foi morto à porta do Ministério (...) durante a noite a Polícia, que se manifestara hostil ao Governo, teve de render-se, não sem ter manifestado num pátio da Parreirinha os seus afectos em vivas entusiásticos à Monarquia"...

De Machado Santos, a grande figura do 5 de Outubro da Rotunda, , dizia que ..."é um sincero em tudo o que faz. Há porem entre estes dois homens diferenças fundamentais. É honestíssimo. Mas é de uma mediocridade intelectual assustadora, o que o conduz, fora da Rotunda, a todos os desaires e a todos os desastres. Está sendo cúmplice inconsciente do Cunha Leal, que não tem escrúpulos de nenhuma espécie, que é superiormente inteligente, e ilimitadamente ambicioso".

Na sua 24ª carta, desabafa que ..."quando mataram o Sidónio - vilíssimo assassinato -, e quando o Teófilo Duarte passeava por Lisboa as suas loucas tropelias, dizia-lhe eu que tinha a impressão de presidir a um manicómio. Hoje tenho a impressão de habitar um covil de feras!" Estas palavras são absolutamente idênticas às de D. Manuel II logo após os acontecimentos de 1908-10, mas Relvas esquece-se do recurso à violência constante promovida pelos chefes do p.r.p. nos derradeiros tempos da Monarquia Constitucional.

De Guerra Junqueiro diz que ..."o fundo irresistível da sua origem semita procura conciliar, com a mais alta e nobre visão da Pátria, os interesses da sua ambição. O que o conduz por vezes a situações lamentáveis".

Voltando à dissolução do parlamento, Relvas escreve: "Outro acto de firmeza do governo que parece estar esquecido, e que todavia não podia ser de maior transcendência, foi a dissolução do parlamento. Por não estar incluída na Constituição a faculdade de dissolver o parlamento, atravessámos épocas políticas agitadíssimas, e viemos a dar a uma revolução." Curiosa auto-condescendência do escriba-primeiro ministro, parecendo oportunamente esquecer-se da tremenda campanha de imprensa levantada pelos republicanos durante o governo de João Franco. Assim, para Relvas a ilegalidade justifica-se, desde que seja a "sua ilegalidade".

Não nos alongando mais no demolidor contributo do antigo primeiro ministro da 1ª república, finalizamos, como epitáfio de uma situação insolúvel, com um pequeno parágrafo:
"Entretanto, todas as pessoas que passam pelo meu gabinete estão assombradas com o espectáculo duma política tão mesquinha. Realmente, este gabinete é agora um posto de observação, e até de estudo, para psicólogos. Nesta luta de pigmeus, a fingirem de grandes homens, é fácil distinguir os motivos que os fazem agir (...) é a indicação que leva ao terreiro do Paço outro Governo, que não pode ser, senão em outros moldes e com outras pessoas, uma reprodução do que vai desaparecer sumido nessa terrível voragem de desorientação e desprestígio em que se somem, nos últimos anos, em Portugal, umas atrás das outras, todas as situações ministeriais?"

quarta-feira, 21 de maio de 2008


"O Governo Provisório foi constituído à la diable e as ideias governativas da Revolução foram entregues ao arbítrio dos ministérios, donde resultou a obra desconexa do Governo provisório e a inconcebível situação dum Ministério acéfalo (...) com acção independente em cada pasta!.(...)Mas faltava a sequência de esforço, e os paladinos da república julgavam cumprir suficientemente a sua missão numa actividade de comícios e conferências (...) estéril para com ela se formar um corpo de doutrina, e dirigir um Estado. deste imenso erro veio a enfermar a vida da República....) Só muito mais tarde, passado o período revolucionário, começaram com o exemplo de Afonso Costa no Ministério da Justiça, os abusos a que ficaram tristemente ligados os nomes de alguns democráticos , e que foram a origem das terríveis campanhas no parlamento, e nos tribunais criminais, de João de Freitas e de Camilo Rodrigues".

As Memórias Políticas* de José Relvas, são uma inesgotável fonte de conhecimento para aquilo que foi a república de 1910-26. A sua implacável análise do carácter - palavra que aparentemente ainda algo significava à época - dos seus correligionários, denuncia afinal o seu próprio envolvimento em todas as manobras de tráfico de influências e de intrigas da agremiação dos Banhos de S. Paulo. O seu entusiasmo pela Revolução como fim único da acção, pode ler-se na paradoxal análise que faz do regime monárquico constitucional que pretendia abater. Assim e referindo-se à opinião que os estrangeiros tinham da suas relações com entidades lusas, Relvas declara que ..."nas suas relações comerciais com os estrangeiros, os portugueses encontram uma grande confiança, pela fiel execução de todos os seus compromissos, recordando-se com grande louvor a honesta pontualidade com que solveram as suas obrigações durante a crise de 1891"...
Numa nota publicada no l'Indépendence Belge, Relvas declara que ..."Et cependent le pays travaille; il veut avancer, il attend avec impatience l'avénement des institutions qui soient inspirées par des idées et des sentiments patriotiques (sic); il en a toutes les conditions pour se faire une nouvelle existence, ainsi qu'un bel avenir (sic). L'agriculture, sa principale force economique, est, malgré tout, en progrès:l'industrie prend un essor assez considèrable, confirmé par l'initiative d'entreprsies nouvelles et par l'augmentation progressive de l'importation des matières premières, son commerce crée tous les jours de nouveaux marchés, il en résultera le plus sérieux développements avec des nouveaux traités de commerce. On connait ses merveilleuses colonies en Afrique (...) assure auz interêts commerciaux, agricoles et industriels du portugal un marché exceptionnel"...
E Relvas prossegue, tecendo sem o querer, autênticos ditirambos à acção dos sucessivos governos da Monarquia. É que todo este ridente panorama de progresso ditado pela explosão dos mercados internacionais, pressagiava a adequação da realidade política em desenvolvimento naBelle Époque nacional - reforma do sistema durante o governo de Franco -, a uma sociedade civil preocupada com os seus negócios e projectos de expansão. Aliás, a viagem de D. Carlos ao Brasil inseria-se no âmbito do claro progresso material que não deixaria de se repercutir num reforço e reforma das instituições. Era este afinal, o grande e único medo dos republicanos. Torna-se para nós - criaturas onde a racionalidade se impõe pelo constante desejo de dar importância ao que verdadeiramente interessa à res publica - um enigma o descortinar do porquê dos ódios e a pura perda de energias para o derrube de um sistema que apesar dos escolhos erguidos pela luta partidária, permitia a chegada do país ao século XX das máquinas, da ciência e dos direitos sociais alargados de uma forma jamais vista na História.
Mesquinhez, inveja, maldade ou inconsciência? São estes alguns defeitos comuns a toda a raça humana e os republicanos do alvorecer de novecentos, ofereceram ao país uma grotesca amálgama de todos os pontos fracos de personalidade, juntando-se-lhes ainda, a simples estupidez.
Para terminar a nossa sexta croniqueta, mais umas considerações deRelvas sobre o gabarito moral dos seus pares:
"Em Bernardino Machado o interesse dominante foi a ambição da Presidência da República, garantida na submissão ao homem que lhe parecia ser o melhor fiador da realização do sonho que o acompanhara desde a hora em que alcançara situação de destaque entre os adversários da Monarquia. para Afonso Costa era ele o penhor seguríssimo da sua omnipotência no governo da Nação desde que o elevasse à suprema magistratura política (...) Esse mau sentimento (B. Machado), e chamo-lhe mau sentimento porque se revestiu por vezes de aspectos odiosos na sua lamentável pequenez, fora-lhe sugerido principalmente pelas palavras de excepcional favor com que João Chagas me distinguira sempre, nos comícios públicos, nos seus artigos, e ainda em reuniões particulares (...) Bernardino Machado fizera uma das suas habituais intrigas para o investir (Cunha e Costa) na representação das comissões paroquiais, certo de encontrar na sua subserviência, e na solidariedade do serventuário Ricardo Covões, espécie de factótum, e, pior ainda, de faca de mato de Bernardino machado (...) para promover na reunião extraordinária do partido, e em actos subsequentes, situações que pusessem em cheque aqueles membros do Directório que ele queria a todo o transe expulsar"...

e continuaremos. O corta Relvas * no seu além-túmulo, prossegue na denúncia dos seus inimigos pessoais que foram afinal, os fautores do nosso miserável século XX.

*Memórias Políticas, José Relvas, ed. Terra Livre, Lisboa, 1977

terça-feira, 13 de maio de 2008

Teófilo Braga descrito por José Relvas

"Há no seu aspecto externo um desleixo miserável. Sem hábitos sociais, tendo vivido uma longa existência confinada entre quatro paredes da sua desordenada biblioteca, dotado de uma natureza fundamental e incorrigivelmente plebeia, avarento, fazendo livros sem probidade, atacando sinuosamente os homens em quem receia competidores, descendo até vis insinuações (...), ambicioso, mas de uma vulgar e baixa ambição, sem a nobreza de quem aspira a um alto destino para a realização de um alto ideal, Teófilo Braga exterioriza o tipo do adelo, coçado ao balcão, em que tem vendido a algumas gerações uma obra feita de retalhos, cheia das promiscuidades do bricabraque literário, em que as botas cambadas e rotas dos pontapés que deu a Herculano e Castilho, emparelham com a casaca do casamento, com que teve o impudor de se apresentar na primeira festa diplomática oferecida pelo ministro da Argentina ao Governo da Revolução! (...) É uma fraca inteligência e um coração insensível (...) A sua acção no Directório, como havia de ser mais tarde no governo Provisório, ou era nula (...) ou era ditada pelos seus interesses, pelas suas ambições e muitas vezes pelos seus rancores. "


Eis o juízo que Relvas fazia daquele que era considerado como luminosa inteligência resgatadora da Nação. Foi o segundo presidente da república.

A república vista pelos republicanos

Um dos aspectos mais relevantes do regime saído do golpe de 3-5 de Outubro de 1910, consistiu na mais estrénue guerrilha inter-partidária jamais vista em Portugal. O embuste ganhou forma como forma de governo e o arrivismo, prepotência e boçalidade dos novos senhores, tornaram-se de imediato patentes aos olhos da atónita opinião pública citadina, que via cair a máscara dos auto-proclamados púdicos. O melhor recurso de que hoje dispomos para o julgamento, mesmo que epidérmico, do carácter daquela gente, consiste nos milhares de folhas escritas em diários, cartas a terceiros e artigos de opinião. Os "republicanos" cultivaram fraternos ódios de clube bairrista, atacaram-se violentamente, disputaram primazias, cargos e prebendas, fazendo empalidecer tudo aquilo que anteriormente diziam acerca dos derrubados rivais do tempo da "ominosa" Monarquia. A realidade da política caseira e internacional, fê-los descobrir a sua total inépcia para a gestão de simples assuntos correntes do Estado e um dos argumentos finais para o seu fracasso, consistiu na acusação de "a república não soube fazer-se porque não expulsou o funcionalismo dos tempos monárquicos". Como se tal coisa fosse possível, isto é, a demissão compulsiva de todos os detentores de cargos relevantes ou não, do aparelho do Estado. Secretários, chefes de serviço, pessoal diplomático e de todos os departamentos públicos, professorado, enfim, toda uma rede que viabilizava Portugal como país soberano e organizado politicamente. Delírios, ilusões e decepções logicamente decorrentes. Foi este o resultado obtido pelos conspiradores dos cafés e tascas da capital.
José Relvas e as suas Memórias Políticas, fornece-nos um precioso manancial informativo, com uma precisão e perspicácia de julgamento dos seus pares que assombra pela absoluta frontalidade e desprezo. Desta forma, utilizaremos as suas palavras para a caracterização do estado de coisas criado pelo regime dos senhores dos Banhos de S. Paulo.
Acerca de Afonso Costa e de Bernardino Machado, dizia ..."aqueles dois homens fizeram uma obra de divisão (...) e foram assim os maiores agentes da obra liberticida que veio a ser a característica da República, na sua pior fase!" De Teófilo Braga, afirmava que ..."o partido republicano teve acerca deste homem as mais funestas ilusões, funestas para a Nação e para a República (...) causa nobre e bela, daquela beleza que em rigor só existe na obra irrealizada"... Desta forma o regime transformou-se ..."num mercado ululante de ridículas ambições e pueris vaidades (...), um estado que perdeu toda a autoridade e todo o prestígio, dirigido por insensatos, anarquizado por doidos e abandonado ao seu destino por egoístas e pusilânimes (Diário de João Chagas, vol. IV, Janeiro de 1919 e vol. II, Paris, Janeiro de 1915). Já no período de desesperada desilusão e referindo-se à manhã da proclamação na Câmara Municipal de Lisboa, desabafava para a posteridade ..."Quem diria então que soma imensa de desenganos viria, não da ideia republicana, mas de outros abusos cometidos pelos republicanos!"
José Relvas, como todos aqueles abastados descontentes profissionais, não percebeu que Portugal era de facto uma república, enfim, aquilo a queLafayette chamava "a melhor das repúblicas". A incomensurável superioridade do rei D. Carlos, a grande visão de um futuro aberto à ciência que era apanágio da rainha D. Amélia e o arreigado patriotismo das camadas populares, foram totalmente obliterados pela simples sanha destruidora, pelos ódios e desejos de ajustamento de contas velhas e pessoais. Foi o triunfo da mediocridade.
No âmbito do centenário do Regicídio e da "república", continuaremos a abordar este tema de geral interesse, a república vista pelos republicanos.

segunda-feira, 12 de maio de 2008

As maluquices couraçadas do P.R.P.



O antigo e defunto prp, usou de todo o tipo de expedientes propagandisticos para atingir os seus fins. As promessas de redenção abrangeram os mais diversos sectores, e sendo arautos do nacionalismo mais exacerbado, naturalmente as forças armadas surgiam como um alvo primordial. Eram um dos sustentáculos da legalidade constitucional e num país onde a escassez de meios financeiros sempre foi um problema, os reduzidos efectivos do Exército e da Marinha Real tornaram-se fonte de discussão.

O prp alegava o desperdício de fundos ou o seu desaparecimento nos bolsos da classe política dirigente e chamava a si a exclusividade da probidade, decência administrativa e justiça na distribuição da riqueza nacional.

Tal como na imprensa que lhes era afecta, os senhores Almeida, Costa eBernardino, entre outros, urravam nos comícios, contra o alegado "abandono" das forças armadas que tinham que defender o vasto património colonial. Em plena Belle Époque e já delineado o sistema de alianças que se confrontariam em 1914, a corrida aos armamentos incendiou a Europa, os Estados Unidos, o Japão e alguns países sul-americanos.

A corrida aos armamentos navais foi um dos aspectos mais relevantes, particularmente quando a Grã-Bretanha apresentou o HMS Dreadnought, o "all big gun ship" que revolucionaria a construção naval.

Sempre utilizando pretensos desvios de dinheiros públicos como causa do nosso atraso, os "republicanos" prometiam na aurora do novo regime, uma drástica modificação da situação da armada portuguesa, pretendendo equipará-la, pelo menos, à congénere espanhola. O conto de reis diário que desde 1822 (D. João VI) era atribuído à Casa Real para cobrir todas as despesas inerentes à representação, viagens de Estado, pessoal, residências, etc., era, segundo se gritava nos comícios, o maior óbice ao progresso. O lisboeta que acorria a ouvir os arautos da demagogia, queria acreditar e avidamente discutia as possibilidades de um Portugal imperial e poderoso que ombrearia com os maiores. Era uma outra versão do prometido "bacalhau a pataco" que viria jocosamente a colar-se à imagem da 1ª república. Este pequeno texto que se segue, é um precioso testemunho da ligeireza e desfaçatez com que os aspirantes a restauradores da pátria, tratavam de assuntos queridos à opinião pública de que dependiam:

"A estas horas, o problema da marinha de guerra portuguesa está virtualmente resolvido nas suas linhas geraes, e o programma naval elaborado só espera pela sancção das próximas constituintes para entrar em plena execução. Este programma, considerado pelos competentes como um documento notável de ponderação e de previsão, dota a esquadra nacional com os primeiros couraçados que figuram na armada portugueza - onde o Vasco da Gama não era, com todos os seus concertos, senão uma caricatura de couraçado".

Seguindo-se a estas linhas, apresentavam-se inúmeras possibilidades e modelos desejáveis, desde a classe Minas Gerais, construída na Inglaterra e em serviço na marinha brasileira, até a elaboradas apreciações acerca de modelos mais recentes. O caricato da situação, reside no constante aumento das exigências quanto à dimensão e poder de fogo dos navios a encomendar, assim como - claro está, era fatal -, às ajudas pecuniárias a prestar pela fiel aliada, a odiada Pérfida Albion do Ultimatum.

Visitando os diversos estaleiros britânicos, as luminárias do prp iam perorando sabiamente acerca das conveniências e provas dadas das casas Vickers e Armstrong, possíveis construtoras da marinha da república.

O alegadamente modesto, razoável e ponderado programa, era de facto, um colossal projecto de impossível realização e desde a primeira discussão parlamentar, deixou de ser levado a sério pelos hipotéticos construtores. Se os doutos destronadores da "ominosa" começaram por se contentar com a classe Minas Gerais, pouco depois já discutiam a nova classe Orion, mais pesada e melhor armada, acabando finalmente por cobiçar a classe "Queen Elizabeth" (na imagem), os super-dreadnought com os quais o Reino Unido combateria na I e II Guerra Mundial. Nada mais, nada menos.

Quando na imprensa europeia foi revelada a intenção inglesa de iniciar a construção de super-dreadnoughts (drédenós, como de forma hilariante lhes chamavam as sumidades que entre o café Gelo e o palácio de S. Bento discutiam o porvir da nação), logo se escutou grande vozear de protesto: se a Inglaterra já planeava melhor, eram esses super-drédenósque interessavam à magnífica república portuguesa! E nada menos.

Muito a sério, seguia-se a lista do pretendido programa naval:

3 couraçados (60.000 toneladas, no caso da classe escolhida ser a Minas Gerais)
3 cruzadores (10.500 toneladas, da classe Almirante Spaun, da marinha austro-húngara)
12 contratorpedeiros (9.900 toneladas, do tipo HMS Cossack)
6 submarinos (2.160 toneladas)
1 navio de apoio aos submersíveis
...

e tudo isto, sem contar com unidades menores para uso nas colónias, assim como a construção de infraesturas de manutenção, bases logísticas e um grande arsenal - o " nosso Pozzuoli", como eles diziam -, em Cacilhas. Nada mais fácil! Eram apenas necessários 45.000 contos da época (só para construir os navios), preço pelo qual se manteria a "ominosa Monarquia" durante mais de cem anos!

Como pérola de remate, mais este naco de demagogia parlamentar:

"O governo e o parlamento não vão hesitar e dentro em pouco no Tejo, vinte e cinco navios com a nossa bandeira mostrarão quanto, com o novo regimen, se pensa em remodelar tudo, em reconstruir, com um entusiasmo a que a realidade ha de corresponder da mais bela maneira!."

E para descobrir o filão aurífero de onde sairia a módica soma apresentada ao cãndido português, alvitrava-se, claro está, um empréstimo a vinte anos. O problema consistia no total desinteresse dos potenciais financiadores, assustados com este enorme rol de patetices debitadas por senhores de lustrosa cartola copiada à moda parisiense.

Como nota final, desde já podemos informar que apesar da pretensa "vitória" da república em 1916-18, ainda não seria o momento azado para satisfazer as loucuras couraçadas daquela gente proba e de elevados princípios morais, os pudicos, como abertamente se chamavam entre si. O auto afundamento da esquadra do kaiser Guilherme II em Scapa Flow, privou o senhor Afonso Costa de tentar convencer os ingleses a oferecer-lhe como despojo, um couraçado que fosse. Quem tem a agradecer por mais este - entre muitos outros - insucessos, é a cidade de Lisboa. É que a marinha republicana, tinha o péssimo hábito de utilizar a sua artilharia contra o casario, martelando impiedosamente os seus oponentes políticos e não olhando a civis ou combatentes: era o que então se chamava a "Fróternidade" (sic). Só como curiosidade, informo que a almejada classe Queen Elizabeth possuía oito canhões de 385mm de boca e cada uma das suas granadas produzia uma cratera equivalente à queda de um pequeno meteoro, esmagando tudo o que se encontrasse numa área circular de sessenta metros.

O epílogo de toda esta lamentável comédia, foi o esperado. Até à década de trinta - e se excluirmos uns poucos navios de pequena tonelagem saqueados à liquidada marinha austríaca em 1919-, os marinheiros nacionais tiveram que se contentar com as unidades herdadas da Marinha Real Portuguesa, ou sejam, o Vasco da Gama, o D. Carlos I, o D. Amélia, o S. Rafael, o Adamastor e alguns outros que ignomínia monárquica lhes deixou.