sábado, 14 de março de 2015

Machinas Fallantes

Ou o mistério da invisibilidade da música gravada em Portugal no início do Século XX
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 “Só o fonógrafo, Zé Fernandes, me faz verdadeiramente sentir a minha superioridade de ser pensante e me separa do bicho. Acredita, não há senão a Cidade, Zé Fernandes, não há senão a Cidade!”
Eça de Queiroz, “A Cidade e as Serras”
Imagine que nas arrumações do sótão da casa dos seus avós encontrava um álbum de fotografias de família dos primeiros anos do século XX — a sensação que essa descoberta faria. Agora, imagine que no mesmo sótão encontrava um fonógrafo, ou um gramofone da mesma época, e uns quantos cilindros de Edison ou discos de goma-laca com a gravação das vozes ou cançonetas dos seus antepassados. É um facto geralmente ignorado que a audição de fonogramas e a indústria fonográfica em Portugal deram os primeiros passos na passagem do século XIX para o XX, ao mesmo tempo que a fotografia “caseira” com as máquinas compactas Kodak. De facto, há em Portugal várias décadas de História da música gravada, dos seus produtores e intérpretes, que são anteriores ao cinema sonoro e ao fenómeno Amália Rodrigues.
Machinas Fallantes: A música gravada em Portugal no início do Século XX, coordenado por Leonor Losa e publicado recentemente pela Tinta da China, desvenda-nos esse mundo desconhecido. Trata-se de um estudo etnomusicológico da música gravada em Portugal desde a primeira notícia publicada na revista O Occidente, em Abril de 1878, sobre os fundamentos técnicos do fonógrafo de Edison (um ano depois da sua invenção).
Este livro profusamente ilustrado, acompanhado por um CD com 20 fonogramas restaurados, oferece pela primeira vez para o grande público um inventário de gravações históricas, partituras, catálogos de discos, documentação de empresas discográficas, lojas, lojistas, empresários, artistas, iconografia, anúncios na imprensa, registos de propriedade industrial, etc. São 240 páginas com um grafismo elegante, que harmoniza com eficiência a profusão de imagens e notas com o texto, beneficiando o leitor da intenção da autora se libertar dos jargões próprios da academia (nem sempre bem-sucedida).
Se ainda ao tempo dos mais toscos cilindros de Edison, as primeiras audições de fonogramas foram tidas como “sessões de alta magia”, nos primeiros anos do século XX a implantação em Portugal do som gravado como mercadoria terá sido percepcionada no mainstream como coisa de excêntricos. Essa é a explicação mais plausível para o enigmático “cenário de invisibilidade”, assinalado por Leonor Losa: o absoluto silêncio que as fontes da época devotaram à indústria do disco então nascente, mas a qual, paradoxalmente, era alvo de profusa publicidade paga nos principais jornais e revistas pelos editores de Lisboa e Porto, dinâmicos lojistas representantes das grandes marcas internacionais, que periodicamente enviavam os seus técnicos em missões a Portugal, para sessões de gravação em espaços improvisados.
Sem um inventário fonográfico nacional, a história da implantação da indústria fonográfica foi quase absolutamente ignorada até hoje — porventura por ser considerada “de pequena escala” e por isso pouco relevante do ponto de vista historiográfico, apesar de, como comprova esta notável monografia, o fenómeno ter envolvido um comércio florescente, a adesão de inúmeros artistas, músicos, artistas de teatro e de revista e bandas filarmónicas, cujo absoluto anonimato persistiu.
Quem sabe quem eram cantores/actores pioneiros, com dezenas de peças comercializadas, como Isabel Costa, Duarte Silva, Medina de Sousa, Manassés Lacerda, ou Reinaldo Varella (que terá sido professor de música do Rei D. Carlos)? Talvez, arrisco eu, que os discos desse período tenham sido equiparados aos “rolos” com temas para as pianolas e as “caixas de música”, artefactos mecânicos tão populares nos séculos XVIII e XIX, que também não constam dos “discursos públicos”, nem eram considerados “produtos culturais”.
Para quem nasceu nos anos 1960, em pleno boom da indústria fonográfica — quando a importância dos seus actores, principalmente os artistas, foi reconhecida política e socialmente, alguns quase idolatrados — a irrelevância concedida aos seus “antepassados” revela-se no mínimo incompreensível, mesmo descontando a precária condição do som e a duvidosa qualidade artística de grande parte das realizações. Esse desinteresse é tanto mais de estranhar quanto afinal o fonograma, um pouco como a fotografia, sua contemporânea, constitui uma inestimável fonte primária de época.
Nesse sentido, esta preciosa obra de Leonor Losa destaca-se por colmatar uma grande lacuna, ao ensaiar os primeiros passos no enquadramento biográfico de alguns dos artistas pioneiros desta indústria.
Bem organizado, o livro estrutura-se em três partes principais: começa com a “Implantação do Mercado de Fonogramas em Portugal”, que aborda o impacto das tecnologias em Portugal e as lojas e lojistas pioneiros na constituição de uma economia de mercado local; a segunda parte, “Música Gravada como Prática Social”, aborda a génese das categorias da música gravada (teatro, humor, cançoneta e fado) e o reconhecimento social das “machinas fallantes” que definitivamente não eram chics no país de 1900. Finalmente, porventura a parte menos interessante, porque mais conhecida, incide na industrialização do sector a partir da gravação eléctrica que cresce com o cinema sonoro, os dias da rádio e o nascimento do star system nacional, que estabelece o protagonismo dos intérpretes, enfim o estrelato tal como o conhecemos.
Não posso evitar uma nota sobre o deslumbramento pelo 5 de Outubro de 1910, que a autora expressa em repetidos pontos da obra, e que a leva a associar, sem fundamentos, o advento da actividade e comércio fonográficos à mudança do regime da chefia do Estado, como por exemplo: “a instalação da república implicou a valorização de estratos sociais até então apartados da aristocracia dominante durante a monarquia” (v. pp. 162) ou, dito de outra forma, “Se concluirmos que, nas décadas anteriores, a música gravada fazia parte das práticas sociais de uma classe intermédia, cultural e socialmente diferentes das classes dominantes, não será despropositado associar o reposicionamento social das mercadorias fonográficas ao processo mais alargado de reposicionamento social da classe média urbana no período que sucedeu a implantação da república” (p. 216).
Esta boutade talvez colha créditos de historiadores politicamente engajados como Fernando Rosas ou Fernanda Rollo (comissária das celebrações do centenário da república portuguesa), que Leonor Losa cita recorrentemente, mas estas suposições — estranhas a um trabalho académico — são afinal tão especulativas quanto atribuir directamente a retracção do mercado fonográfico na década de 1910 à constante perseguição à imprensa, repressão dos movimentos sindicais, redução de 70% do eleitorado, violência nas ruas e exclusão explícita das mulheres da vida cívica que a revolução acarretou.
Ao contrário, o que parece mais evidente, do ponto de vista histórico, é que terá sido o imparável processo de decadência da velha aristocracia e a democratização ocorrida na crescente sociedade urbana durante a monarquia constitucional de 1834-1910 a dar lugar a uma renovada burguesia de prósperos industriais, comerciantes e funcionários do Estado. Afinal, em 1900 — quando já prosperavam em Lisboa a Casa Santos Dinis, e no Porto o Centro Phonográfico Portuguez de Ricardo Lemos (p. 37) — morria Eça de Queiroz, que sobre a república havia dito anos antes: «O Partido Republicano em Portugal nunca apresentou um programa, nem verdadeiramente tem um programa. Mais ainda, nem o pode ter: porque todas as reformas que, como Partido Republicano, lhe cumpriria reclamar já foram realizadas pelo liberalismo monárquico.»
Apesar disso, a edição deste livro constitui, sem qualquer dúvida, um marco. Que inspire outros investigadores, e sobretudo desperte o interesse do público em geral, ou ajude a elucidar mais um curioso como eu, que um belo dia me vi seduzido por este fascinante mundo dos sons antigos, ao descobrir numa arrecadação de família um velho fonógrafo de Edison com dezenas de cilindros de cera, que depois de reabilitado, pôde encantar-me com ecos de ambientes e sonoridades do tempo dos avós dos nossos avós.

Texto original da recensão publicada no Observador

quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

Regicídio - 107 anos


A Real Associação de Lisboa promove no próximo dia 26 de Janeiro pelas 17h30m no Salão Nobre da Sociedade Histórica da Independência de Portugal uma sessão evocativa dos 107 anos sobre o trágico assassinato de Sua Majestade o Rei Dom Carlos e de Sua Alteza Real o Príncipe Dom Luís Filipe. Nessa ocasião será proferida uma alocução pelo Ten. Cor. João Brandão Ferreira. José Campos e Sousa apresentará a exposição "Monumento Fúnebre d'El-Rei Dom Carlos e do Príncipe Real D. Luís Filipe - Da ideia à inauguração: um ano de mobilização da Pátria reconhecida” e interpretará algumas peças musicais sobre o tema. A exposição estará patente ao público no Palácio da Independência de 27 a 30 de Janeiro, das 15h às 18h.

Pum! Pum!


Eu se apanho algum paivante, Pum! Pum!
Faço-o logo em mil pedaços, Pum! Pum!
Fica em estilhaços no meio do chão…

Se paivante é na gíria um sinónimo de cigarro, esse era também o nome depreciativo dado pelos revolucionários aos monárquicos que, inconformados com o golpe de 5 de Outubro, decidiram seguir Paiva Couceiro, o carismático militar que se veio a afirmar como líder da resistência monárquica no projecto político-militar restauracionista. Desse combate apenas viria a desistir aos 76 anos quando o Estado Novo o condenou ao último de vários exílios. Esta é uma canção satírica de cariz político republicano, intitulada “Republicana”, gravada entre 1911 e 1914 em Lisboa para a editora alemã Odeon.

Publicado originalmente aqui