Era uma vez um homem pequeno e magrinho, mal tratado pelos anos e privações, de pele curtida pelo sol e pelo mar, que parava todos os dias à porta da tasca daquela rua, de palito na boca e olhar nostálgico, na expectava de algum frete que lhe rendesse uns copos que inflamassem uma boa noite de cavaqueira. Chamava-se Portugal e consta que tinha envergonhadas origens fidalgas, e que em tempos vivera histórias e aventuras de pasmar.
Em frente à tasca, ficava uma magnífica mansão, onde morava uma esbelta senhora chamada Europa que ele há muito observava e seguia de esguelha, num mal disfarçado enlevo. Atraia-o o seu porte elegante e sofisticado que o enchia de arrebatado e secreto desejo.
Certo dia quando a Senhora elegante chegava a casa dumas proveitosas compras, baixando os óculos escuros para o nariz observou mais demoradamente no outro lado da rua o homem de aparência tisica, encostado à parede da tasca, aspirando uma beata sôfrega. Foi nesta sequência que o motorista, após receber indicações da senhora, se dirigiu ao velho jarreta com um cartão, que o convocava para uma visita à bela mansão, naquele mesmo dia à hora do chá.
Não teve mais sossego nesse dia: foi numa inaudita excitação que se dirigiu ao seu quarto miserável, numas águas-furtadas ali perto, para fazer a barba de 5 dias, com uma lâmina velha, uma fatia de sabão azul e um caco de espelho. Foi com o coração palpitante que Portugal mudou a camisa rota, esfregou as axilas, penteou os poucos cabelos que lhe restavam, pôs uma gravata ruça e um casaco escuro que herdara dum tio emigrante. Às cinco da tarde, quase a desfalecer de emoção, não sem antes passar o pente uma última vez na cabeça, tocou a campainha daquela porta intimidante, cuja sombra projectada para o interior conhecia de cor cada milímetro, de tantos anos de contemplação e cobiça. Mandado aguardar uns submissos instantes no grandioso hall da entrada, a criadagem conduziu-o de seguida a um faustoso quarto com banhos fumegantes, onde foi submetido a uma profunda operação higiénica com fundos comunitários. Foram-lhe depois entregues roupas limpas e uns sofisticados artefactos que ele não conhecia a utilidade, mas que rebrilhavam de novos e davam estilo.
Foi assim catita e bem cheiroso, tão subsidiado que até parecia um assessor ministerial, que o pobretana compareceu no salão onde a Senhora Europa, o recebeu com um misto de apreço e curiosidade mórbida. Em vez de o convidar a sentar, pediu-lhe que permanecesse ali mesmo, àquela distância, e puxando duma sineta de imediato respondeu um mordomo, a quem foi ordenado chamar a criançada ao salão. Imediatamente se ouviu um crescendo de passos descompassados, e duma desordenada correria logo o grupo se dispôs em composta formatura no ângulo oposto à decrepita criatura. Pareceu-lhe reconhecer alguns daqueles infantes cujo movimento observava há longos anos a entrar ou sair daquela grande casa, sempre crescendo bem nutridos e saudáveis, alguns até com aparência desportista. Aquela ali, esbelta e loura, de ar trocista chamava-se Finlândia, aqueloutra vaidosa e sedutora devia ser a França. Uma outra, mais encorpada, de cabelo ralo e com ar austero era certamente a tal Alemanha…
Foi então a Senhora Europa se levantou e agradecendo presença de Portugal para aquela solene ocasião, dirigiu-se autoritária às outras nações: “atentai minhas filhas, que é assim, decrepitas e inúteis, que ireis ficar se não cumprirdes o pacto de estabilidade!” De seguida ofereceu-lhe dois cigarros e dispensou o velho tísico, não sem que antes ele devolvesse o casaco de lã fina e os sapatos de pelica.
1 comentário:
Gostei da aplicação da palavra «cavaqueira». É a palavra certa. Não sei se foi propositadamente mas... «sweet».
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