domingo, 30 de novembro de 2008

Entrevista à Revista Homem Magazine (2)

Continuamos hoje a transcrição da entrevista da jornalista Cláudia Baptista sobre o projecto Plataforma do Centenário da República publicada na revista Homem Magazine de Novembro:

Perseguições, políticas, fraudes eleitorais e perseguições à imprensa são algumas das acusações feitas. Como explicam que até hoje não tenham sido devidamente denunciadas?

No princípio encontra-se uma boa porção de facciosismo, depois a situação de “encobrimento” prolonga-se, sustentada na inércia, no comodismo e no muito respeitinho pelas instituições vigentes.

Durante décadas, escrever a história da república equivalia a um acto de fé contra o Estado Novo. Quem se debruçava sobre esse período eram jornalistas de temperamento combativo como Carlos Ferrão e Raúl Rego, que viam nos seus livros o prolongamento de polémicas da imprensa contra os “monárquicos” e os “nacionalistas”. As obras deles eram comemorativas e justificativas da república, sem disfarce algum. Cada frase que escreviam constituía um argumento a favor do regime caído em 1926. Procuravam, acima de tudo, calar os inimigos da república, reduzir a pó os argumentos dos que a atacavam. Essa fase foi ultrapassada e a investigação académica produz hoje em dia literatura abundante, muito especializada, sobre aspectos parciais da vida da república. Mas os conceitos definidos nas primeiras gerações continuam a impor-se com uma certa força, não só no meio académico mas também naquelas instituições que têm por missão defender a memória do regime: museus, bibliotecas, ministérios e parlamento.

Uma das mais persistentes ideias que se colaram à imagem da república é a de um regime democrático perturbado pelas ditaduras de Pimenta de Castro e Sidónio Pais. Na história da república tudo parece impreciso, só os períodos ditatoriais são definidos com precisão, como se houvesse uma nítida fronteira entre as ditaduras e o que se lhes antecedeu ou seguiu. Depois de definidos estes períodos de ditadura, inclui-se tudo o resto no conceito de democracia. Todos os políticos que se opuseram aos “ditadores” são classificados como “genuínos” ou “lídimos” democratas, o que pode parecer lógico mas exige muita distracção na forma como se apreciam os acontecimentos. Um governante pode ter proibido a circulação de jornais, pode ter mandado prender monárquicos, pode ter organizado eleições sem oposição, pode ter transferido juízes para os confins do império, pode ter tirado o voto aos analfabetos. Tudo isso lhe será descontado na biografia se ele se tiver oposto aos “ditadores” Pimenta de Castro e Sidónio Pais. E não é raro vermos exposições ou homenagens públicas onde se exalta o percurso de um destes heróis da república, elogiando-se a sua postura de oposição a todos os “totalitarismos”. Estes rótulos são usados à laia de biografias, dispensando mais amplas indagações.

No ensino escolar, onde predomina a falta de espaço para explicações coerentes, a república é despachada em meia dúzia de frases, cujo objectivo é justificar a curta vida do regime sem lhe manchar a imagem. E encontram-se textos notáveis pela concisão, como o de um manual de História do 11º ano, publicado pela “Asa”, onde se conta que a república resvalou para a ditadura do Estado Novo porque a constituição de 1911 era “excessivamente democrática”, permitindo que mudassem os governos “por dá cá aquela palha”, o que lhe deu uma grande instabilidade: 48 governos em 16 anos.

Devemos reconhecer que a república portuguesa não se encaixa facilmente num manual escolar. As suas contradições, os fantasiosos temas em que se concentrou a sua propaganda, pedem explicações complexas e demoradas. Logo na primeira época do republicanismo, a da propaganda, se manifestam as dificuldades: como explicar que um partido revolucionário escolha para seu inimigo e responsável por todos os males do mundo os jesuítas? E como justificar a escolha, para herói e ídolo da democracia portuguesa, do Marquês de Pombal, com o seu perfil desfigurado ao ponto de se fazer dele o homem que aboliu a inquisição? Não admira que os autores de manuais escolares prefiram começar a história do republicanismo português com o episódio do ultimato inglês em 1890 e a indignação levantada por este. Daqui passam directamente ao regicídio e logo a seguir falam da proclamação da república. Assim seguem um caminho mais compreensível, embora ponham de parte os temas predilectos da imprensa republicana.

(Continua)

1 comentário:

Nuno Castelo-Branco disse...

É-lhes conveniente, pois o que agora vemos, é a tentativa de fazer o mesmo, com outros métodos.