Infelizmente, muitos dos ataques à democracia encontram fundamento exclusivo na chamada crítica realista; ou seja, nos factos, nos comportamentos e na etiologia das enfermidades de que esta forma de governo padece. Salta à evidência que as democracias são pouco expeditas, lentas, muitas vezes inoperantes, amiúde convivem com a impreparação e o amadorismo, a fulanização e o trepadorismo de gente absolutamente falha de escrúpulos. A democracia, dizem os seus inimigos inteligentes, é um insulto à desigualdade constitutiva das sociedades, é um absurdo pois impede a governação longa e avisada, tem de se render ao apetite das massas e da irracionalidade, é errática, tende a ser confiscada por demagogos e satisfaz-se com a maioria numérica. Lembram os cépticos da democracia que a esta é, em Aristóteles - nesses terríveis libelos anti-democráticos que são os livros III e VII da Política - a degenerescência da Politeia, tal como a oligarquia o é da aristocracia e a tirania da monarquia. A tradição anti-democrática tem uma história longa que se confunde com o mais profundo pensamento filosófico. Na Ética a Nicómano predica-se a justiça como finalidade da política. Se a democracia vive derrancada na busca do benefício para cada um, é, ipso facto, irreconciliável com o bem-comum da Cidade.
Contudo, se forma alguma de governo cumpre as exigências do Estagirita, essa é, contraditoriamente, a democracia. Satisfaz-nos plenamente a abordagem negativa.
- É em democracia que os cidadãos não são privados de cidadania;
- É em democracia que as constituições não são mudadas ao sabor do interesse de quem governa;
- É em democracia que o direito prevalece;
- É em democracia que a liberdade e a auto-determinação florescem;
- É em democracia que a felicidade é negociada e alcançada pelo bebate.
A democracia deve, necessariamente, ser limitada, vigiada e fiscalizada, pois a democracia transporta a pulsão totalitária a que Talmon se referia para escândalo dos democratas nas suas Origins of Totalitarian Democracy. Essa democracia messiânica, fundada na crença, comporta-se como uma tirania [benigna], mas não deixa de ser uma tirania. Ora, pelo conselho da história, verifica-se que a única forma bem sucedida de limitação dos abusos e excessos da democracia se radica na aceitação do convívio da democracia com um poder não democrático - isto é, não eleito - mas que lhe lembra aquilo que não é passível de revisão. Isto sempre aconteceu. As mono-arquias nunca existiram, senão na forma degenerada de tirania. As monarquias sempre foram abertas à participação, à representação, à oposição e não houve monarquia pré-moderna que não se submetesse ao voto, à fiscalização e às sansões legal como real.
Hoje, as monarquias ditas constitucionais (constitucionais sempre o foram na forma das constituições históricas que lembravam os limites e as obrigações do Rei) lembram ao transitório aquilo que é permanente. A democracia representa o homem; a monarquia representa a sociedade, a história, a memória que determina e alimenta a vontade dos homens viverem juntos em sociedade. A democracia exprime a volubilidade, o passageiro, o contingente; ou seja, é absolutamente humana e alimenta-se do sonho peregrino da justiça e igualdade para todos. A democracia é um admirável exercício de determinação e só há cidadãos onde estes podem, em concorrência, falar, escrever, opinar, criticar, eleger e legislar. A democracia é ruptura permanente e deve ser, sempre, disjuntiva, como as políticas o devem ser para o Estado não se afundar no ritualismo.
Por seu turno, a monarquia é um contrato longo de estabilidade, o anteparo da Política, o inculcador de comportamentos conjuntivos. Só quem ainda não compreendeu a força moral tremeda que a monarquia insufla na democracia continua a perseverar no erro trágico de a considerar inimiga da soberania popular.
quarta-feira, 13 de janeiro de 2010
Monarquia e protecção da liberdade
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5 comentários:
O que verificamos é que os grandes actores políticos do século XX saíram de países com regimes republicanos, se excluirmos obviamente o império britânico. Há um facto incontornável: a genética não favorece os sistemas fechados.
Felizmente os regimes europeus (republicanos e monárquicos) nos nossos tendem a ser democráticos. Mas é bom não esquecer também os erros trágicos cometidos por monarcas como Vitor Emanuel III que apoiou a ditadura de Benito Mussolini.
Se algumas monarquias europeias vivem tempos calmos, não é assim para todas. A situação de divisão interna da Bélgica não está resolvida e o actual monarca não tem o carisma do irmão. É apenas um exemplo em que uma sucessão dinástica não dá resposta aos problemas do país.
JE
JE
Não concordo, caro Jerónimo. Dizem os estudiosos do fascismo que a consumação do totalitarismo não se verificou por resistência da instituição real. O fascismo escolheu uma via longa para o totalitarismo e não a conseguiu impor, pois havia, no ordenamento constitucional e na hierarquia do estado um obstáculo inamovível. No fim dos anos 30, Mussolini tentou contornar a monarquia, sugerindo que a sucessão devia ser votada pelo Grande Conselho do Fascismo. Era a prova da resistência ao regime por parte da chefia do Estado.
Quanto à Bélgica, esta só existe porque há um rei. Aliás, a Bélgica é um milagre que confunde os nacionalistas (diria tribalistas)pois conseguiu a quadratura do círculo: católicos e protestantes, alemães, flamengos e valões vivendo num país com metade da superfície do Alentejo.
Sim, dizia-se que na Bélgica só havia um belga, o rei Alberto. Mas o meu ponto era precisamente esse. A Bélgica é um país (um tanto artificial), não uma nação. Talvez fosse melhor estarem separados (flamengos e valões). Pelo menos foi o que lá senti.
Cordialmente JE
Jerónimo:
O "arificialismo" da "Bélgica" parece resistente. De facto, a "Bélgica" existe desde a Idade Média e chamou-se Burgúndia, Bispado-Principado de Liège, Províncias do Sul até 1830. Para que um país exista, não é necessário que se confunda com uma nação. Aliás, esse preconceito oitocentista foi responsável pelas maiores catástrofes do século XX.
Populações diferentes podem viver no mesmo país, sem que isso implique guerra civil larvar ? Podem, mas só em monarquia (vide Império Austro-hungaro, v. Imp. Otomano, v. Espanha, v. Tailândia). Quando a monarquia se desagrega, o vínculo desaparece e é a desgraça.
Basta consultarmos um Atlas histórico e verificaremos a permanente existência da Bélgica, começando na época do Ducado da Borgonha e prosseguindo pelos Países Baixos espanhóis e depois, austríacos. A Bélgica existe há muitos séculos e não consigo imaginar o mapa da Europa sem esse pedaço de terra entre a França e a Holanda.
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