segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

As touradas da república.



Por sua parte [o povo português], acha-se no seio da civilização que o explora como o touro em tarde de corrida no meio do redondel. É puro, bravo, boiante e claro. Está aí para o que quiser dele o capinha, o bandarilheiro e o espada. Acenam-lhe com o trapo encarnado e ele arrancará sempre com lealdade e braveza, entrando pelo seu terreno, acudindo ao engano e indo ao castigo de todas as vezes que o citem para atacar, para escornar, para estripar e afinal para morrer, o que tudo para ele é unicamente marrar. § Como o boi puro, o povo não se desilude nunca, nunca se desengana na lide.
Ramalho Ortigão - «Farpas na República». verbo: 1910, pp. 33-34.

Os boatos e clichés são como cancros que quando se metastizam contaminam toda a sociedade, levando as células a considerar mau o que antes era bom, e vice-versa. Uma afirmação, por falsa que seja, proferida com certeza por um interlocutor carismático, pode espalhar-se como o fogo numa seara. Numa época em que a Imprensa, como nunca, foi utilizada para destruir um regime, a maledicência tornou-se numa arma manejada por qualquer um que soubesse ler e escrever, desde políticos a simples ressabiados. Um dos exemplos mais flagrantes foi o da piolheira, expressão que Bordalo Pinheiro colocou na boca de D. Carlos com o intuito muito claro de acelerar a destruição da reputação do monarca entre os súbditos. E quem não sabia escrever, desenhava, criando o grotesco (veja-se o Zé Povinho) como forma de crítica social. E assim se procedeu à catequização republicana que começou muito antes de 1910.

Um dos clichés mais frequentes ainda hoje persiste é associar monarquia a marialvismo. Nesse aspecto, seja permitida a crítica, o próprio lado monárquico, pouco tem feito para erradicar ou amenizar a ideia de uma aristocracia beata, frequentadora de festas e profundamente arreigada às touradas. Mas esta ideia das touradas reais, de que fala o fado "Lisboa Antiga", não acabou em 5-10-1910. Aliás, nem antes dessa data a frequência naqueles espectáculos era apanágio de monárquicos ou nobres. Todos, sem excepção, frequentavam as praças de touros de Norte a Sul do país. De resto, tais espaços foram cruciais para a evangelização do povo pelos políticos republicanos.

Em 1907, numa praça do Ribatejo, houve um enorme comício republicano, como documenta a Ilustração Portuguesa , e um ano antes, em Maio de 1906, Afonso Costa - que sabia dar à população o que ela queria -, apareceu no Campo Pequeno para ser ovacionado em frente à Família Real. Ele próprio era um apreciador daquele cruel "desporto". O novo regime, que para sobreviver devia decalcar muitos dos ritos da monarquia, instituiu as "touradas republicanas", onde no camarote, agora presidencial, os chefes de estado assistiam, para gáudio popular, a grandes e faustosas corridas. O próprio Sidónio Pais foi assíduo frequentador das touradas. António Cabral recorda-se de o ter visto em Maio de 1918 vindo da praça de Touros do Campo Pequeno (Memórias, volume IV, 1932, p 362). No ambiente de protesto, as corridas de touros ocorriam com a normalidade de sempre:
"Na capital, o povo delirava. Sidónio Paes, triumphador, era acclamado com louco entusiasmo. N'uma tarde de domingo, 12 de maio, os operarios da construção civil ajuntavam-se, em comicio, no parque de Eduardo VII, reclamando contra a falta de trabalho, ao mesmo tempo, na praça do Campo Pequeno, em festa de gala, corriam-se touros. Á saída do espectaculo, milhares de pessoas rodearam o carro do presidente, soltando vivas, dando palmas, saudando, n'um clamor de alegria, o homem, que poucos mezes depois, era abatido a tiro, como se fôra um animal perigoso!

Não era o único aficionado. Durante o Estado Novo, o toureio, como o galo de barcelos, ou a tricana de Coimbra, entre outros, tornaram-se símbolos inseparáveis da Nação e do regime. Era comum que Americo Tomaz presidisse a touradas e que Craveiro Lopes, acompanhado de sua mulher, assistissem a corridas de touros organizadas alegadamente por razões de beneficência.

Ainda hoje o regime tenta criar a ilusão de que se pode apoiar as touradas sem ferir susceptibilidades de quem as considera um acto de barbarismo. E aproveita-se de uns e outros, como sempre se aproveitou daquele espectáculo para veiculação dos novos ideais republicanos. No fundo, a República nunca deixou de tratar o cidadão como o touro que urge controlar com rodeios, segundo a genial narrativa e comparação de Ramalho Ortigão (ver acima) em Fevereiro de 1911. Mas se perguntar a um qualquer cidadão o que lhe lembra as touradas e os seus protagonistas, ele dirá, quase com certeza, que se trata de uma manifestação extemporânea de elites, ligadas ao "tempo dos reis e nobres". Engana-se. A prova disso é que as touradas ainda existem e Portugal já não é uma monarquia há 100 anos.

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