segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Comissão Oficial do Centenário em homenagem a Dª Amélia!



Diz a notícia batráquio, que ..."aproveitando as Comemorações do Centenário da República", realizar-se-á uma série de eventos culturais em toda a capital. Orquestras de jazz, disc jockeys, dança e cinema, preencherão um mês inteiro. Não podemos deixar de "parabenizar" - é assim que deveremos passar a falar, não é? - quem se lembrou de entreter os numerosos turistas que acorrem a uma cidade em completa decadência. Esburacada, com os seus prédios a ameaçarem substituição por monturos informes de reles betão, deserta e com fachadas cheias de letreiros "pois Era", "vende-se", temível "projecto aprovado" e outras malandrices do estilo, Lisboa precisa de oferecer entretenimento, nem que seja para simular pertencer ao mais badalado espaço europeu. Na verdade, esta capital cada vez mais se parece com a sua prima além Mediterrâneo, a Argel das esplendorosas construções de traço francês, vidros estilhaçados, trapeiras que se afundam nas telhas partidas, fachadas que mostram cinco ou seis camadas de tinta às três pancadas, alumínios que substituíram as persianas de madeira, estuques esboroados e gradeamentos enrubescidos pela ferrugem do tempo. É o progresso que temos.

Concordamos com a ideia de aproveitar as noites amenas do estio, onde uns jogos de luz emprestarão algum brilho a cenários de alvenaria cheios de mazelas que o impenitente sol não deixa esconder. O que se torna um absurdo é a inclusão destas iniciativas, no âmbito das comemorações da famigerada república. Não contentes com degraus e os losangos ao estilo Burbbery's, uma estátua equestre com carradas de lixo e um cais de pedra quase desaparecido no Terreiro do Paço, agora servem-se da república para entreter os viandantes mais incautos. Para mais, atrevem-se a invocar as "mulheres" da dita cuja, para prestarem louvaminhisses que estranhariam às mesmas. É que enquanto na monárquica e aliada Inglaterra, as milhares de activistas que seguiam Emmeline Pankhurst acabaram por conseguir a igualdade que lhes era negada, no Portugal republicano tivemos as mulheres sujeitas à discriminação milenar e pior ainda, com princípios impiedosamente propagados em cartilhas, jornais de leitura em casa de pasto, legislação vexatória e oratória vibrante de machismo que roçava a misoginia e outras certezas, próprias de sifilíticos machotes sorvedores de vinhaças no café Gelo. Os linotipistas ao serviço das folhas de Afonso Costa lá iam compondo umas linhas destinadas a ensinar os seus bons "chefes de família" e tanto sucesso obtiveram, que aquela "república calma, de ordem e de tranquilo progresso" que sucedeu ao período revolucionário, integraria plenamente na ideologia oficial, todo o precioso legado de quem estabeleceu as regras da prioridade, da hierarquia. De facto, a partir de 1910, deixou de haver lugar à possibilidade de uma mulher ascender à chefia do Estado, quanto mais, tornar-se, por imposição desse cargo, comandante supremo das forças armadas... Era só o que mais faltava, voltar Portugal inteiro a ter de deixar um ser inferior, destinado à mudança de fraldas, panos do pó, panelas, vassouras e agulhas de coser, passar à frente de homens que ainda por cima, abriam alas em respeitosa reverência. Nem pensar nisso, nunca mais. O mulherio devia seguir por outro caminho e voltar à batinha doméstica, porque a outra, aquela que dizia o que bem entendia ser a verdade, fazia lembrar aqueles ominosos tempos, em que os homens eram pela regra, obrigados a sujeitar-se a costumes bem diferentes.

Acabaram-se com os puxões de orelhas a ministros que faziam ouvidos de mercador às imprecações de uma Amélia de Orleães, escandalizada pela fábrica de gás construída diante da Torre de Belém. Acabaram-se de vez com as retiradas estratégicas diante da colossal figura da majestade, quando esta perseguia conselheiros e deputados, exigindo a tomada de medidas e a outorga de projectos e verbas que zelassem pela saúde pública, instituíssem sanatórios, hospitais, institutos de investigação científica, lactários, cozinhas de assistência, berçários e programas de formação da juventude. Nada de chapéus espampanantes com penas de avestruz, rendas, leques e sedas cor de rosa à la mode de Paris, ou muito menos ainda, primazias de primeira fila. Nunca mais queriam ter pela frente Marias Segundas que se atreviam a colocar ministros na ordem e apontavam com o indicador para o articulado da Carta, ou Marias Pias que ameaçaram militares golpistas com pelotões de fuzilamento. Sobretudo, não admitiriam mais Amélias que liam e se imiscuíam na vida pública, tinham opinião e discordavam, não podendo por isso mesmo, ter qualquer tipo de relevo. Visibilidade ou primazia institucional, então, jamais.

Para os fulanotes de chapéu de coco, bengala, bigodinhos retorcidos e pêras à caceteiro do republicanismo, o símbolo de muitas mulheres foi durante décadas, aquela que um dia desembracou numa Santa Apolónia apinhada de um povo desejoso de ver o futuro que chegava. Aquele porvir que trazia o interesse pela ciência e pelas questões que procuravam mitigar os abusos do laisser faire da sociedade liberal. Essa mesmo que gostava de pintar ao ar livre, que se atrevia a ler "indecências estrangeiras", ia ao teatro sem o marido, discutia os grandes temas como uma igual entre os intelectuais e que ousava fotografar, tratando ela própria, das coisas técnicas da nova arte.

Amélia de Orleães era para os rufiões do PRP, ..."a mulher de hoje, sobretudo aquela que vegeta nas cidades onde há cheiros de civilização, não é a mulher como devia ser, nem tão pouco parece aproximar-se da devida meta, é uma mulher manequim, chapa aonde os holofotes das casas de modas de Paris e de Londres projectam as linhas caprichosas dos seus figurinos complicados. E’ uma mulher falsificada, pretensiosa, entalada em rígidas lâminas de aço, e aumentando sensivelmente o seu peso real com alguns quilos de algodão que lhes retocam as deficiências do físico." Este textozinho, consiste numa amálgama daquilo que o PRP fazia distribuir pelas ruas da capital quando à rainha se referia e a primeira imagem que imediatamente surge, é a do retrato pintado por Corcus, pendurado na parede de honra do Museu dos Coches. Daí o ódio por quem saía à rua sozinha com os filhos, ia às compras na Baixa, cavalgava solitária no Jardim do Campo Grande, frequentava as touradas no Campo Pequeno, discutia os temas da actualidade, atrevia-se à política, enfrentava genuínas ou duvidosas sapiências e trocava correspondência com vultos eminentes da ciência e das artes. Não podia ser, aquela mulher significava a subversão da ordem aceite.

Muito bem faz a escabiótica comissão oficial do Centenário da República - a república de 1926-74 incluída -, quando sem o querer, homenageia quem jamais se sujeitaria ao estatuto de inferioridade a que o regime condenou as mulheres portuguesas, a partir daí votadas à condição subalterna de madames Carmona, donas Gertrudes e pouco mais, porque das outras, as senhoras Bernardino ou Almeida, não reza a história. Muito menos ainda, os figurinos da moda.

De facto, quando se fala em república de início do século, apenas um nome permanece na mente de todos: o da corajosa, gigantesca, teimosa, inteligente e risonha Amélia. Um ícone sem rival.

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