Quando da ocorrência do golpe de Estado de 1910, a Europa vivia os derradeiros momentos da Belle Époque, sem suspeitar que poucos anos depois, todo um mundo desapareceria, vítima da voragem da Grande Guerra. Até ao verão de 1914, as notícias divulgavam o carnet mondain parisiense, as visitas de Estado dos monarcas europeus, o escândalo Calmette-Caillaux e inevitavelmente, a desastrosa situação social, política e económica em Portugal. As correrias nas ruas de Lisboa, as bombas, assassínios e as consecutivas quedas de governos, ofereciam aos leitores interessados, a imagem de toda uma sociedade em conturbada crise identitária, onde uma república fora imposta violentamente pela vontade de associações secretas e de um partido considerado minoritário no arco constitucional português. Com as prisões abarrotando de presos políticos, à Europa chegavam informações de tortura, atropelo aos direitos, ilegalidades e arbitrariedades das autoridades que coagiam uma justiça, que condicionada por grupos de rufiões a soldo dos caciques políticos, desprestigiava os tribunais.
Num cenário de catastrófica anarquia, a imagem que os europeus tinham dePortugal, era negativa, pois ainda estava presente no espírito de muitos, o regicídio de 1908, onde a autoria moral e material dos republicanos, não oferecia dúvidas a ninguém. Curiosamente, a imprensa francesa era uma das mais críticas e virulentas na análise da situação portuguesa, surpreendendo desagradavelmente os incondicionais francófilos do prp que na França viam o modelo a copiar pelo regime instaurado a tiro na Rotunda.
João Chagas é um homem típico da sua época. Medianamente culto, seguidor dos princípios do politicamente correcto do quotidiano, enfastiava-se facilmente quando era obrigado a prescindir dos círculos aristocráticos ou da alta burguesia parisiense que assiduamente frequentava. Os seus diários são eloquentes quanto ao turbilhão social em que mergulhou durante a sua estadia na capital francesa. Festas, bailes, chás, jogos de sociedade, beija mãos a condessas e princesas, ou tráfico de influências junto ao poder político e da imprensa. Pouco nos diz acerca da sua visão - segundo um programa criteriosamente estabelecido - de um Portugal que pretende inserir-se no século XX das maravilhas técnicas, do progresso social e da liberdade. Não. Entre 1914 e 1921, escreve centenas de entradas que relatam a sua preocupação pelas aparências, as suas dogmáticas e sebastianistas certezas na etérea visão de uma república que é república formalmente e apenas isso. Espanta-se pela revolta latente em Portugal, indigna-se pela pressão das hostes monárquicas e corrobora na necessidade de perseguição às vozes discordantes da situação. Parece que se esquecera dos trinta anos que antecederam o 5 de Outubro, durante os quais o seu partido de tudo se serviu para destruir o regime constitucional - um dos mais livres da época - legalmente estabelecido.
O que se torna paradoxal nesta obra, consiste na falta de um projecto, na perfeita inconsciência da realidade, negativa para todos, em que Portugal se encontrava. A sua exclusiva preocupação, resumia-se a uma indisfarçável vanglória, na ânsia de se ver equiparado aos seus colegas diplomatas das potências europeias e, claro está, numa furiosa e constante diatribe contra os seus correligionários do regime, neles vendo a causa do insucesso da sua mirífica ilusão de uma república restauradora de glórias passadas. O resto do texto, é um longo rol de preconceitos, dichotes, intrigas, boatos e campanhas difamatórias - onde uma vez mais a rainha D. Amélia se torna um alvo apetecível - e, finalmente uma exaustiva e interessante informação acerca das casas da alta sociedade parisiense, onde a gastronomia, o luxo e a trivialidade dosfait-divers senhoriais o impressionaram fortemente.
A opinião que tem do regime dos seus, é má, pois "...a República...dá-me a impressão de uma desordem que cada vez mais se agrava, em que já há facadas, em que já corre o sangue, e a que eu assisto de longe, com o coração aos pulos, mas de braços cruzados". Entre um jantar de gala onde brilhavam senhoras altas, bem vestidas e ostentando portentosos decotes e uma amena charutada com homens públicos, Chagas encontra palavras de incontornável desprezo relativo aos representantes de nações extra-europeias "... à minha direita uma grande mulata que não sabe uma palavra de francês, mulher do ministro de San Domingos... a pobre mulher acha muito boa la comida del palacio e bebe todos os vinhos que o criado lhe serve". Tudo o mais consiste na enumeração dos convivas para os habituais ágapes, onde pontificavam príncipes, condes, duques e alguns homens do Estado francês, zelando de forma obsessiva a sua aparência, onde o bem vestir era, segundo facilmente se depreende, uma condição incontornável para se ser considerado.
Chagas sente um nítido desdém pela qualidade intelectual e moral dos seus pares e acalentou ódios que duraram até ao fim dos seus dias. António José de Almeida, Brito Camacho, Bernardino Machado, entre muitos outros - afinal o essencial do regime republicano -, são crismados com epítetos que fazem empalidecer aqueles outrora outorgados à classe política da monarquia. De resto, a imprensa francesa não lhe dá tréguas, relatando detalhadamente as greves, levas de presos, perseguições e abusos de poder em Portugal, o que perturbava a sua ronda pelos bailes do Eliseu, as visitas ao fotógrafo Nadar, as idas ao teatro ou furtivas espreitadelas aos roliços colos das damas do corpo diplomático. Facto espantoso, é a sua surpresa perante o estilhaçar do serviço diplomático português, queixando-se amargamente da falta de contacto com o Ministério dos Negócios Estrangeiros em Lisboa, do qual raramente recebia notícias ou directivas, dependendo totalmente da imprensa internacional. De facto, o novo regime não podia prescindir dos quadros oriundos do seu predecessor, pois a imensa maioria dos membros do prp, não era gente capaz ou idónea para preencher os requisitos para a normal gestão do Estado, nem se encontrava inserida na vital rede de contactos e relações pessoais da diplomacia internacional. Os jornais estrangeiros são a constante preocupação de Chagas que por todos os meios tenta mitigar a opinião desfavorável que tinham da república, pois o relato das constantes ocorrências em Portugal, destruíam a imagem ideal e propagandeada de um país renovado e aberto ao futuro. Estava em causa, afinal, a sua própria reputação em Paris. No entanto, como o autor expressamente declara, a maioria das publicações trazem "...artigos tremendos contra a República. Em appoio das suas affirmações esses jornaes reproduzem opiniões de republicanos portugueses". A imprensa lisboeta vai divulgando as "tumultuosas e escandalosas sessões na Camara. O senador João de Freitas disse ao Alexandre Braga: v. Exa. é um miserável apache. O Braga não se mostrou sensível à affronta. O João de Menezes pegou-se ao socco com o presidente da Camara. Foi preciso separá-los. Um horror". Estes episódios eram recorrentes e assim, Chagas vai reproduzindo aquilo que a imprensa publica, como os escândalos de corrupção "...a crise (...) provocada pela questão da concessão das águas do Rodam, feita em favor de António Maria da Silva, deputado (...) que chamou canalha a um deputado. Este por sua vez chamou-lhe tolerado (...) as galerias intervieram na contenda e deram morras a Affonso Costa. Nos Passos Perdidos houve bofetões. Toda a gente andava armada" (17 de Junho de 1914). Um mês depois, a 15 de Julho, Chagas escrevia que "...em Portugal novos acontecimentos anormaes de que a imprensa de Paris esta manhã se occupa. Os amigos de António José d'Almeida, reunidos aos anarchistas, promoveram em Lisboa um comício durante o qual se comparou o Affonso Costa ao Diogo Alves e ao José do Telhado. À noite desordens no Rocio. O Café da Brazileira foi assaltado por um grupo (...) aos gritos de - Abaixo a formiga branca! Dispararam-se muitos tiros de revólver. Parte do café ficou em estilhas". Os pequenos compadrios e situações de nepotismo, mereceram inúmeras referências "...o António Bandeira (...) vai (...) occupar finalmente o seu logar de ministro em Berne, que conquistou sem grande esforço. Apenas o trabalho de ser primo do Bernardino Machado". Na necessidade premente de encontrar quadros afectos ao novo regime "... fui eu o primeiro homem que em Portugal lembrou este Teixeira Gomes (...) um pouco poseur (...) e que não se arranjava mal (...) Bernardino Machado (...) não gostou d'elle, por lhe parecer impertinente, ou desrespeitoso. O amor próprio de B. Machado não suporta aparencias altivas (...) como sempre, porém, fez uma tolice e em vez de o collocar em Madrid, onde elle não estaria muito fora do seu logar, no meio um pouco cigano da Hespanha, colocou-o em Londres, onde está inteiramente deplacé. Teixeira Gomes é uma especie de Oscar Wilde, com alguns vícios d'este e sem o seu talento (...) não é feio homem, mas falta-lhe nobreza (...) parece um clown enfarinhado".Brito Camacho é outro dos ódios pessoais de Chagas, chamando-lhe "...estúpido até à torpeza".
Os relatos do seu diário dos primeiros sete meses de 1914, focam genericamente os mesmos temas: a imprensa estrangeira, bastante cáustica em relação ao desvario político, económico e social imposto pelo novo regime em Portugal; a imprensa portuguesa, uma preciosa fonte de informação - e de aflição -, para um diplomata que carecia das mais elementares directivas para a prossecução da defesa dos interesses nacionais em Paris; e uma infinidade de almoços, jantares, visitas a teatros, clubes privados, casas da nobreza, ao palácio presidencial, além de uma vertiginosa agenda de festas bailes, soirées lúdicas e apreciação da moda feminina. A profunda antipatia para com os menos bafejados pela fortuna denota o seu carácter, preocupado em alcandroar-se a um lugar cimeiro, de onde julgava impiedosamente o valor de outrém, disso dependendo a sua apresentação física, os seus gostos, modos e maneira de vestir. João Chagas era um impenitente dandy, mais impressionado pelos roçagantes fru-frús das sedas e rendas das merveilleuses da época, que com aquilo que verdadeiramente interessava: a procura de um rumo e de um projecto paraPortugal. Tal como o regime implantado com o tiroteio na Rotunda, dava mais relevo ao acessório, porque de facto, o essencial desvanecera-se na meramente virtual demagogia dos seus pares. Nunca compreendeu que era parte integrante de um sistema e de uma forma despreocupada e irresponsável de conduzir os destinos de um país. Portugal pagaria bem caro esta incompetência e neste centenário da república, urge desvendar factos que ao longo das décadas foram sendo esquecidos ou habilidosamente adulterados pela propaganda oficial.
(continua).