segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

O dia mais importante da nossa História



Em 1995, uma simples afirmação do então presidente Mário Soares, demoliu um mito propagandístico velho de mais de um século. Para grande desespero ou despeito dos sátrapas e escribas do pensamento oficialista, Soares justificava a sua participação como P.R., na cerimónia de Estado em que consistiu o casamento dos actuais Duques de Bragança. Acompanhando naquele importante momento um amigo de décadas, M. S. declarava também estar Portugal a prestar uma homenagem à Casa de Bragança pelos relevantes serviços prestados à Pátria, à sua liberdade e independência.

Ficaram assim soterradas as grandes tiradas retóricas das Conferências do Casino, osFinis Patriae que culminaram com o Crime no Terreiro do Paço e as justificações fastidiosas, incipientes e vazias de conteúdo histórico escritas por um Oliveira Martins que sendo um impenitente idealista, vergastou a dinastia para acabar por nela reconhecer, sob o turvo prisma do cesarismo, a redenção de Portugal.

Todas as velhas nações possuem as datas que calendarizam glórias passageiras, aquelas que ingratamente o tempo condena ao posterior olvido pelas gerações que não as viveram. Os desastres das batalhas perdidas são frequentemente compensados pela gesta de uns poucos - o Decepado, o Soldado Milhões ou um D. Sebastião - que souberam bem morrer ou resgatar a periclitante honra dos outros, que ausentes do campo onde de pé se morria, nem por isso se sentiam menos atingidos por uma tragédia ainda não percebida, mas que inexoravelmente sobre as suas cabeças faria tombar a vingativa espada do inimigo. Os grilhões apostos aos conquistados, seriam então exemplar justificativo e testemunho do espírito de sacrifício Santificava-se desta forma, aos olhos de um misericordioso Deus que do alto velava pelo seu povo e lhe forjava no ânimo, esse querer de libertação e do retorno a um perdido mas não esquecido tempo, onde a Lei dos naturais conformava a espontaneidade de um sentido de pertença à comunidade, a Grei.

A Monarquia Portuguesa criou a nação que somos e essa identidade tem sido ao longo das centúrias, plenamente justificada através de nebulosos e por vezes lendários indícios da especificidade das populações que foram consecutivamente ocupando o território que ainda hoje se chama Portugal. Os lusitanos, os conventos romanos e a criação do primeiro mas efémero Império Ibérico, erguido pela força guerreira visigótica, enraizaram nas mentes daqueles que lhes sucederam, essa certeza do direito à constituição de uma entidade territorial distinta daquelas outras com quem ainda partilhava o idioma e mais importante ainda, a Fé.

14 de Agosto de 1385 consistiu talvez, a data a partir da qual este país deixou para sempre a contraditória e incerta condição estatutária de uma parte independente de uma grande Galiza. Essa confusão decorrente do próprio processo de criação do reino no século XII, ditava uma aparente edição localizada e muito particular do feudalismo que imperava além Pirenéus e que das suas faldas se estendia até à foz do Niémen. Um qualquer acaso sucessório derivado da morte de um monarca sem descendentes, ou um negociado matrimónio que forjava uma outra realidade política na Respublica Christiana, modificava então as sempre frágeis fronteiras e no tempo fidelizava os povos à nova dinastia. Aljubarrota foi importante, servindo de marco ao reconhecimento do interesse específico das ..."muitas e desvairadas gentes"... que viviam naquele espaço criado jurídica e perpetuamente pelo tratado de Alcanizes. Os portugueses tinham como cumprida a sua parte na Reconquista da terra outrora cristã, há séculos avassalada e subjugada pelo invasor que viera do outro lado do mar, com desconhecidas línguas, estranhos costumes e exótico deus.

Pela primeira vez, uma vitória militar colocava em definitivo, a realidade territorial Portugal, no palco de uma Europa que perdidas as ilusões de uma reunificação que fizesse ressurgir o cristão império romano, levava os seus reis, príncipes ou republicanos condottieris, a gizar alianças, garantindo a sua supremacia sobre rivais e vizinhos. No entanto, Aljubarrota consistiu no culminar de um curto e turbulento período de realinhamento interno de forças políticas, económicas que confluíram no interesse pela preservação da independência que surgia como a essencial condição da prosperidade e realização pessoal de quem mais podia e o repúdio por todos os demais, de um poder estranho e até então considerado inimigo. O 14 de Agosto escancarou as portas daquele sentido de urgência de acrescentamento do domínio, cumprindo-se assim simultaneamente, o brado "Deus o Quer" de uma cristandade que tudo podia justificar.

A chegada de Gama à Índia, a descoberta do Brasil - uma das grandes e actuais razões do nosso direito a existir como Estado e inegável símbolo da grandeza histórica de Portugal - e aquela ininterrupta série de espantosas, mas hoje infelizmente esquecidas vitórias nas quentes águas do Índico e do Pacífico ocidental, podiam almejar ao título da mais importante data da História de Portugal. Contudo, se nos tornaram para sempre visíveis perante um mundo que até então nos ignorava, não foram suficientemente prenhes de consequências que garantissem aquela certeza de pertença e de necessária preservação de um legado já antigo de quase meio milénio.

A morte do vate nacional, Camões, num hipotético 10 de Junho de 1580, quando ostercios de Alba implacavelmente escreviam uma nova página possibilitada pelo desastre de Alcácer Quibir, surgiu para as mentes dos românticos oitocentistas, como única e diamantina oportunidade de distanciamento de uma outra data, que para a totalidade do corpo nacional, servia de pendão de honra ao espírito de resistência que esmagara invasores, rasgara tratados iníquos e galvanizara o ânimo consagrador da liberdade desta nação que há muito era uma Pátria.

O dia 10 de Julho será então imaginado pelos seus promotores como a unanimemente aceitável data que divorciaria os portugueses daquela clara manhã de 1640, em que o escudo de armas português para sempre se retirava da simbólica da União Dualista. Esta União - afinal sempre desejada pelos promotores republicanos do 10 de Junho de 1880 - baseara a sua legitimidade na força da espada e no ouro das moedas corruptoras e enlouquecedoras do espírito de discernimento de alguns. O fim último desta tentativa do radicar de uma nova data que seria assim considerada como a mais importante da História de Portugal, era o rebaixamento da dinastia que surgia como um mero e fortuito acaso ou recurso de um grupo de abnegados e bravos redentores a ela alheios. Fantasiaram-se episódios de resistência do duque D. João e justificou-se a aceitação do Levantamento por parte dos Braganças, pelo "varonil ânimo" da castelhana duquesa D. Luísa de Guzmán. Construiu-se habilidosamente o mito da indecisão e do espírito timorato daquele, que afinal pela sua prudência, sageza de pensamento e resolução na acção de estadista, garantiu o sucesso da Revolução. Arruinou materialmente a sua Casa, mas ganhou a coroa e a liberdade de Portugal como reino independente que pela força das armas e astúcia dos políticos, conservou o legado ultramarino que ao tempo interessava. É a definitiva confirmação de um novo vector da nossa presença no mundo, que da Ásia transita para o espaço Atlântico onde ergueria um novo império, ainda hoje um grande entre os maiores.

Não cabe aqui o desfiar das desditas que para este país significou o seu achincalhar à condição de província de uma Grande Ibéria que estendia os seus braços à Europa Central, Flandres, Reno, Milão, ao sul da Itália e que transformava vastas regiões católicas do Sacro-Império, em simples dependências ou inevitáveis e subalternas aliadas.

1580 reduziu e inferiorizou um Portugal já imperial, com domínios que se estendiam das plagas norte-africanas às costas do Japão. Porto de abrigo e de comércio para todas as nações cristãs, Lisboa habituara-se à presença das alvas gentes do Norte e à colorida presença daqueles que oriundos da África, Índia, China ou zona malaia, provavam o senhorio reclamado pelos monarcas que ostentavam orgulhosamente o título de Senhores do Comércio e da Navegação na Guiné, Etiópia, Índia, etc.

A permanente e férrea política de alheamento dos conflitos continentais que esmagavam populações, devastavam campos e semeavam a perniciosa semente da inimizade histórica entre vizinhos, fortificou a consciência da identidade nacional, a necessidade de com todos dialogar e comerciar e o direccionar dos esforços para a preservação e dilatamento do património territorial conseguido com tantos e custosos sacrifícios.

Existem algumas efemérides que embora sejam importantes marcos e signifiquem o início de novas experiências políticas que uma mudança de regime implica - o 24 de Julho, o 5 de Outubro, o 28 de Maio ou o 25 de Abril -, não se revestem daquele transcendente significado que a palavra Liberdade no seu sentido mais lato - o da gente e o da Pátria como entidade política autónoma e internacionalmente reconhecida pelas outras - só é conseguido por aquele dia em que se restaurou a independência portuguesa.

O 1º de Dezembro de 1640 é a data mais importante da nossa História, pois se internamente consagra o desejo da totalidade de uma Nação que animicamente já o era há muito, internacionalmente consistiu na confirmação de uma necessidade desejada por todos aqueles que combatiam uma prepotente e implacável hegemonia, cega ao direito das terras e das gentes. A Restauração foi saudada com efusão em boa parte da Europa e se para alguns consistiu numa oportunidade para o abatimento do Leviatã que há mais de um século ditava a lei nas relações entre Estados, para outros oportunamente surgia como ocasião para a consolidação do esbulho do património luso espalhado pelo mundo. A vontade e o sacrifício abnegado dos portugueses de então, desiludiu aqueles que apenas esperavam um passageiro e apetecido contratempo à imperial Espanha de Filipe IV e de Olivares.

O dia 1 de Dezembro de 1640, foi o mais longo da nossa História e prolongou-se por vinte e oito anos de terríveis sacrifícios. Os portugueses bateram-se praticamente sós, contra as duas grandes potências de então - a Espanha e a Holanda -, vencendo uma nos campos de batalha da raia e a outra, a belicosa Batávia, nos mares, no sertão brasileiro, em Angola e nas longínquas paragens asiáticas. A Guerra da Restauração foi um conflito em múltiplas frentes, onde o ferro da espada e a pluma dos diplomatas e dos grandes homens que juridicamente justificaram perante o mundo a libertação, se irmanaram num indissolúvel elo que garantiu o sucesso final. Se na Europa os terços lusos conseguiram rechaçar a coligação de nações que era o exército dos Habsburgos espanhóis, no além-mar Portugal defrontou e acabou por vencer o mais implacável, fero e traiçoeiro inimigo de que há memória. De facto, a luta contra a talassocracia e o poder financeiro da hostil e exterminadora Holanda, criou tantas e aprioristicamente inultrapassáveis dificuldades, que o resultado da emancipação foi por muito tempo incerto e geralmente considerado como condenado pelas chancelarias europeias, desde o Vaticano às monarquias do Norte. A França surge como transitória protectora interessada em tolher o movimento à sua rival continental que via desprender-se o mais precioso florão da sua coroa e a Inglaterra, baqueava na guerra civil, impotente para o pleno cumprimento do papel que o velho Tratado de Aliança lhe ditava como obrigação. Os portugueses - Portugal, um todo - para sempre tornou presente a sua condição de Estado, numa Europa que via nascer e desaparecer entidades políticas, conforme a vontade dos grandes do momento e desta ou daquela guerra perdida. A memória de 1640 reavivou-se naquela outra Restauração em 1808, quando pela primeira vez derrotado o invasor francês, a legitimidade erguida como bandeira pelo povo, fez saber ao soberano no distante Brasil, o apego da nação à sua liberdade entre as demais.

Portugal inteiro o quis e assim o fez. Lutou, negociou, transigiu por vezes. Contra todos os prognósticos, restaurou a legitimidade do seu Direito e no trono colocou quem dele tinha sido pela força esbulhado em 1580. Venceu o irredutível ânimo de todos, irmanados no resgate de uma liberdade que justificava assim, a própria existência das gentes que alçando o pendão da nossa terra, tornou seu o bradoLiberdade! Liberdade! Viva El-Rei D. João IV!

Hoje, decorridos trezentos e sessenta e oito anos e num momento grave que compromete os ideais de 1640, devemos sentir como próprias as palavras do duque D. Duarte:

"Todos os que pensarem que o sonho dos fundadores e dos restauradores ainda está vivo, venham ter connosco; e se alguém questionar este crescente sentir do poder do povo, a resposta é hoje, como o foi no 1º de Dezembro: O rei é livre e nós somos livres!"

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