sábado, 10 de julho de 2010

O Sr. Andrade - barbeiro e socialista republicano


Era neste hotel, comido e carcomido, pelo tempo distorcido, que o Sr. Andrade tinha a sua barbearia. Num anexo, há uma duzia de anos encerrado, precisamente desde que o Sr. Andrade morreu.
Tudo se passava na Vila do Conde de antigamente. O hotel nasceu na Década de 30 do século transacto e o Sr. Andrade, então já homem e profissional de barbas e cabelos, ali se estabeleceu. Sobreviveu ao hotel, no seu pequeno nicho, com todo aquele equipamento cosmético em metal e a cadeira de palhinha, como já não há. Trabalhou até que a morte, muito repentinamente, o levou.
Os veraneantes dessa Vila do Conde vinham todos, senão do Porto ou do interior minhoto, de Lisboa ou mesmo do Ribatejo. Havia-os salazaristas rijos, havia-os muito mais liberais ou mesmo francamente oposicionistas à - então assim chamada - "Situação". Por mais que puxe pela cabeça, não me lembra os houvesse republicanos.
Todavia, o Sr. Andrade era nem mais do que - empedernidamente - socialista e adepto da República.
Nesse tempo, o dia começava, para os cavalheiros em férias, com uma ida à barbearia, a meio da manhã, operação tida por indispensável antes de qualquer investida até ao paredão da praia. A política era um tema corriqueiro, entre os jornais e a navalha ou o pincel carregado de espuma nas mãos do Sr. Andrade.
- Então, Sr. Andrade, que nos conta?
- Isto vai mal, Sr. Dr., isto vai muito mal...
- Pois vai, mas tudo se há-de...
- Olhe que não, Sr. Dr., isso pensa V. Ex.cia...
Os veraneantes tinham no Sr. Andrade um amigo verdadeiro, um confidente. E o Sr. Andrade, o homem mais educado do mundo, sabendo que tantos dos seus clientes o podiam "entalar" com uma simples denúncia, em todos confiava. Nos civis e nos militares. Falava-se abertamente de tudo na sua barbearia. Antes e depois do 25 de Abril, em que qualquer coisa podia passar pela cabeça do Sr. Andrade, tantos eram os fascistas que se tinham sentado na sua cadeira de palhinha. Mas não. Nunca. O Sr. Andrade era também um senhor.
Conheceu o meu Avô, que morreu em 1938. Ria-se com as aventuras do meu Pai e admirava-lhe a acutilância das suas observações contra o salazarismo. A mim, em 1993, já muito trémulo das mãos, ainda me aparou a barba. Lembro bem aquela navalha, pouco segura, a passear no meu pescoço. Mas não havia que temer. O Sr. Andrade republicano, sabendo-me monárquico, como já o meu Avô e o meu Pai, jamais seria capaz de me jugular.
E depediamo-nos de fortíssimo shake-hands, um abraço no final da época estival. Esse abraço que daqui lhe mando, para onde ele está de certeza, entre os justos.

3 comentários:

Nuno Castelo-Branco disse...

Passando os olhos por este texto, a politiquice que grassa na blogosfera - e pela qual perdi qualquer tipo de interesse -, nada parece ser. E não é! Gostei muito desta memória.

João Afonso Machado disse...

Obrigado, meu caro Nuno!

Lurdes Gonçalves Pereira disse...

(teclado ingles)
Ha pessoas q tem uma sensibilidade politica admiravel conseguindo equacionar perfeitamente lucidez e perserveranca ideologicas com
divergencias de formas de estar e pensar. E o caso do autor deste registo de memoria.
Joao Afonso, tambem gostei muito deste trecho q pauta pela consistencia nostalgica, comovente pela sua sinceridade e, sobretudo, pelo respeito e solidariedade humana.
E sempre com gosto q eu leio as suas linhas. Continue a obsequiar-nos, por favor.