Desde sempre, as Forças Armadas foram vistas pelos portugueses, como o irredutível baluarte que garante a liberdade da nação, encarada aquela sob a forma do pleno exercício da soberania sobre o território histórico delimitado há mais de oito séculos de conquista, povoamento e uniformização pela lei comum.
O Exército e a Marinha estiveram no centro dos acontecimentos que paulatinamente elevaram o pequeno reino à inesperada condição da grandeza na História, facto sem paralelo na Europa e que decorrido meio milénio, conseguiu a proeza de elevar a língua portuguesa, à condição de uma entre as maiores no planeta, quase remetendo à condição residual, aquelas faladas por povos de grandes potências, entre as quais decerto pontificarão a Alemanha, a França ou a Itália.
Quando da passagem do Centenário do Regicídio, verificaram-se certas movimentações no âmbito castrense e muito sintomaticamente, surgiu o general Garcia Leandro a alertar para as dificuldades existentes no seio das F.A.P. Facto inédito e que pode ser interpretado como aviso, o general tinha como pano de fundo, o antigo - e prestigiosamente verdadeiro - escudo das Armas Portuguesas, aquele mesmo ilegalmente derrubado pela unilateral Constituição de 1911.
A profissionalização das forças armadas, trouxe uma realidade difícil de gerir, habituados como os portugueses sempre estiveram, a um serviço militar obrigatório que aliás, foi um alicerce do próprio Estado Liberal nascido da vitória de 1834. Durante o período das amplíssimas liberdades da Monarquia Constitucional, muitos foram os chefes de governo que saíram das fileiras, normalmente desempenhando cargos políticos e partidários, sem que "o exército" pudesse ser de alguma forma acusado de intervencionismo permanente nos negócios públicos. Foi exactamente a sua abstenção no 1º de Fevereiro de 1908 e no 3-5 de Outubro de 1910, que reverteu a tendência que já há muito se verificava e remetera as Forças Armadas - então Exército e Marinha - ao seu papel de guardiãs do património territorial e da independência do país. O caos da república, a necessidade premente do intervencionismo no jogo partidário e o sacrifício da sua independência em prol dos interesses sectários, destruíram o equilíbrio habilidosamente conseguido durante quase setenta anos de regime constitucional. O Chefe do Estado - o rei -, era igualmente e de forma explícita e universalmente aceite, o Chefe das Forças Armadas e por isto mesmo, a garantia formal de independência das mesmas face ao poder dos interesses económicos, políticos e partidários, obviamente cúmplices como é normal em qualquer democracia. O realismo deve ser norma e este é um facto indesmentível que temos de aceitar.
A clamorosa e humilhante derrota face às stuermtrueppen do kaiser Wilhelm II, os assassinatos quotidianos, o descalabro financeiro e uma torrencial legislação eivada de boas intenções mas sem qualquer sentido prático, conduziram o país ao beco da falência do Estado que correu um sério risco de inviabilidade e puro desaparecimento, com o total alheamento das outras potências, mesmo aquela que sendo a Aliada tradicional, esteve prestes a reconhecer o fait accompli de um Finis Patriae lusitano.
Não vale a pena continuarmos indefinidamente a proceder a considerações acerca do papel das Forças Armadas durante o Estado Novo, pois foram sendo relegadas à sua missão de garantia de segurança e paz interna dos territórios do Ultramar e da Metrópole e em 1939-45, não foram obrigadas ao sacrifício - previsivelmente inglório - de fazer frente aos ímpetos expansionistas de um Reich que pretendeu ser milenar, nem de se submeter à condição subalterna de tropas auxiliares da Commonwealthanglo-saxónica.
Cumpriram de forma brilhante, sacrificada e inesquecível, os cometimentos exigíveis quando da eclosão da Guerra de África, lutando contra imensas e aparentemente insuperáveis dificuldades. Sem aliados que lhes fornecessem o equipamento mínimo, souberam improvisar e acima de tudo, conquistaram o meritório papel de defensoras de populações negras e brancas que se viam ameaçadas pelo ciclo de atrocidades que sob a África se abateram desde o início da cataclismica tempestade dos chamados "Ventos da História".
No século XX, o seu intervencionismo político tem ocorrido, sobretudo, quando confrontadas com prementes necessidades de cariz corporativo e sendo um dos fundamentos do Estado, encontram-se paradoxalmente desprotegidas e à mercê da boa ou má vontade dos civis que se alternam na governação. Paradoxalmente, porque não dispõem dos recursos sindicalizantes das hostes civis e porque têm desde sempre garantido, a perenidade de "situações"que se sustentam pela precisa e lógica abstenção das Forças Armadas no jogo político. Quando o Chefe do Estado - ainda hoje conhecido como presidente da república - era militar, garantia-se pelo menos dejure, uma certa independência na senda do caminho trilhado pela quarta dinastia e podemos mesmo arriscar o nome do general Ramalho Eanes, como um perfeito exemplo da quase unanimidade da vontade nacional, fosse ela civil ou militar.
Os portugueses sentem e querem uma nítida delimitação daquilo que pode ser cedido no capítulo da Soberania Nacional e não existe qualquer comissário ou presidente do conselho europeu - seja ele estrangeiro ou português - que possa convencer este povo do contrário. Há limites inultrapassáveis e disso têm as Forças Armadas a perfeita consciência, desde o chamado soldado raso ao general do topo da hierarquia. Ainda há uns anos, quando o governo Guterres pareceu considerar a hipótese do encerramento das Academias Militares, atribuindo essas funções formativas à congénere espanhola, o silêncio glacial nos quartéis e a clara oposição da opinião pública, trouxeram o necessário abandono do grotesco projecto.
Desde então, os sucessivos governos - independentemente dos partidos componentes dos mesmos - se têm servido das Forças Armadas, como um precioso instrumento de publicidade e visibilidade daqueles, em termos internacionais. São enviadas "missões de paz" ao Médio Oriente, África, Oceânia e Balcãs, sem que por isso as F.A.P. estejam devidamente equipadas para um honroso e activo cumprimento das operações que lhes são destinadas.
Um exército profissional deve ser isso mesmo, logo bem remunerado e consequentemente afastado das quezílias da jogatina política. Não se lhe pode ser solicitado qualquer sacrifício, se simultaneamente, os mesmos que decidem acerca da sua transferência para cenários de duvidoso interesse nacional, são os primeiros a consentir em campanhas públicas mais ou menos disfarçadas numa imprensa a soldo. O regime sente-se mal com as forças armadas, porque os políticos sabem que tudo lhes devem. Devem-lhes os apetecíveis lugares do Poder, devem-lhes a visibilidade internacional, devem-lhes a paz interna e a total e inegável abstenção na vida político-partidária.
Dizia o coronel Vasco Lourenço há alguns meses, que ..."não me preocupo com conversas de generais, mas sim com aquilo que dizem ou sentem os quadros intermédios das forças armadas"... (grosso modo foram estas as suas palavras). Passando sobre a insignificância do peso do dito coronel numa hierarquia vertical que nada tem em comum com uma época de sapatilhas rotas, rallyes de Chaimites, barbas à Che ou SUV's, não deixa de ter razão e ironicamente, são esses mesmos quadros intermédios que se tornam cada vez mais audíveis. Estão a um passo do vociferar e em mais um lampejo da minha memória - que, digo-o sem falsa modéstia, é prodigiosa -, recordo-me da entrevista do general Garcia Leandro e do tal pano de fundo.
A verdade é que os portugueses estão sempre prontos a acorrer às ruas em delírio, manifestando toda a fé e esperança no rasgar de situações espúrias que rebaixam à condição de vergonhosa prostração, uma História gloriosa da qual hoje somos um débil eco. Não admitirão contudo, o arriscar da tranquilidade cidadã, pelo simples reivindicar deste ou daquele salário ou subsídio. As Forças Armadas foram, são e serão sempre, o braço que empunha o estandarte das grandes mudanças regeneradoras, encaradas estas como um projecto de afirmação nacional, em ordem , segurança e liberdade. E sobretudo, como instauradoras da legitimidade.