quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009
Cortina de fumo: a "4ª república"
O visível estertor do regime da 3ª república, oferece-nos a vantagem de seguir com algum interesse, os argumentos apresentados pelos defensores do status quo e daqueles outros que não pretendendo alterações de monta, propõem a urgente operação cosmética que iluda o generalizado sentimento da necessária mudança.
No semanário Expresso da última semana, Henrique Raposo contesta as posições do vitalício constitucionalista Vital Moreira, o sempre conhecido e estrénuo defensor dos postulados a Constituição de 1976. Tal como Jorge Miranda, concebe-a como coisa sua, digna de figurar no albúm de recordações da juventude, mesmo quando ao tempo era deputado do estalinista PC de Cunhal e decerto sonhava com um articulado constitucional bem diverso daquele que conforma esta democracia burguesa.
Diz Vital Moreira que a Constituição possui instrumentos de freio e contrapesos sólidos no que cerne aos poderes instituídos pelo texto, evitando-se os excessos da personalização e o défice da reflexão institucional. Desta forma, parece considerar o poder presidencial de dissolução parlamentar, como o mais decisivo contrapoder no sistema. Aqui, fazemos notar - sem quaisquer pretensões, porque somos leigos na matéria, mas nem por isso cidadãos pouco atentos -, a completa anomalia que significa a necessidade de existência de um contrapoder, especialmente quando é fatalmente dirigido contra aqueles que a maioria da população elegeu como seus representantes. Temos pelo reconhecimento desta desnecessária realidade, a assunção da fragilidade do próprio regime, forma híbrida de compromissos firmados num período de transição.
Entramos assim, na plena discussão daquilo a que eventualmente alguns se prepararão para chamar de 4ª república, onde o móbil do contencioso previsível reside na claramente messiânica presidencialização do regime, ou pelo contrário, na própria reivindicação dos actuais poderes do p.r. pelo 1º ministro, com o evidente reflexo no parlamentarismo puro e consequente caducidade do período ainda vigente, no qual o p.r. é eleito através do sufrágio universal.
Os argumentos de princípio geralmente aceites, tal como a necessidade institucional de evitar a personalizaçãp da política, estabelecem os limites impostos pelo próprio conceito de democracia, que se vale sobretudo das suas instituições consagradas em texto constitucional e não em fulanismos de enigmáticos contornos políticos num certo momento. A experiência da 1ª e da 2ª república parece ter feito escola no campo da teoria, mas o contraponto imposto pela realidade de um país que viu a normalidade constitucional cerceada por um hiato de quase sete décadas - 1910-75 -, prova a inequívoca e constante tentação da derrapagem no caudilhismo que só a escassa qualidade - há que assumi-lo - e carisma dos homens públicos, tem impedido a instalação de uma nova situação de hegemonia de um hipotético one man show.
Entre todos os argumentos discutidos, surge bastante clara a partilha do poder por parte dos dois principais partidos rotativos, embora por precaução tal não seja inequivocamente explícito, remetendo-se apenas os dois comentadores, para modelos conformadores do edifício estatal, sem contudo se mencionar uma única vez uma verdade que é por todos conhecida e que aliás, pretende encontrar uma outra fórmula que lhe permita manter-se indefinidamente.
No período de declínio da popularidade de uma dada maioria, é recorrente o apelo da "opinião pública" ao p.r., para proceder em conformidade com o momento político - signifique isto o que significar -, dissolvendo o Parlamento. Desta forma, os mandatos de quatro anos saídos de eleições para a a.r., são mera baliza temporal que confirma para o exterior a democraticidade do sistema, sem que este limite de vigência de uma maioria possa ser encarado como o próprio cerne da existência da reclamada democracia do regime. Dois anos, três anos, no máximo, eis o palmarés invariavelmente apresentado pela 3ª republica, no que respeita à durabilidade dos executivos e respectivas maiorias que os suportam. Comparemos o nosso caso com o da monarquia vizinha e tiremos as conclusões necessárias.
Ao contrário de países como a Dinamarca, onde a simplificação extrema do regime passou pela presidencialização dos poderes do 1º ministro e reserva para o Chefe do Estado - a rainha Margarida II - as incumbências consideradas como históricas, a república portuguesa reflecte na sua orgânica, o profundo conflito de interesses partidários que a conformam, tendo criado uma miríade de instituições que alegadamente servem de fiscalizadoras daquilo que a Constituição estatuta como Lei. Desta forma, foi criado o Tribunal Constitucional, o Procurador Geral da República, o Provedor da justiça, a Autoridade para a Concorrência, o Banco de Portugal e porque não considerá-lo?, o Conselho de Estado. A verdade é que todas estas instituições dependem fortemente da personalidade de quem nomeia o seu titular, neste caso o p.r. e na maior parte das vezes, o próprio partido que detém as rédeas do poder governamental. A reclamada independência dos órgãos face ao poder político de momento, é desta forma uma falácia, pois em regra, os juízes conselheiros são frequentemente, correntes de transmissão do partido a que pertencem, exercendo as suas funções, sem que exista a mínima possibilidade de escrutínio popular às individualidades que encarnam certos princípios políticos ou um dado conceito de organização da sociedade. Os seus poderes são tão vastos que se ergueram hoje aos de fazedores da moral pública vigente, imposta por desconhecidos e tacitamente aceite pela massa amorfa de eleitores despojados de escolher estes legisladores de secreto ou inacessível areópago.
Curiosamente, Henrique Raposo aponta claramente para a necessidade de uma revisão dos pressupostos que envolvem os poderes presidenciais, parecendo querer atribuir ao temporário inquilino de Belém, a possibilidade de nomeação vitalícia de juízes do Tribunal Constitucional, sob a condição de prévia fiscalização parlamentar. Deste modo, ficamos assim totalmente á mercê de uma qualquer mexicanização do sistema, pouco importando qual seja o partido que colha a benesse propiciada pelo p.r. em exercício, que poderá muito bem num dado momento, coincidir com a maioria governamental. Teríamos assim uma garantida eternização no controlo da coisa pública, pois os mecanismos de pressão ou recompensa estariam firmemente detidos pelo conluio partidista p.r/a.r. Em compensação, Raposo aponta para a necessidade do p.r. "abrir mão" do poder de dissolução parlamentar, mero sofisma que salva as aparências, uma vez que com essa magna concentração de potestades, torna-se completamente desnecessário. Ficamos ainda sem saber qual o desenho pretendido para a nova lei eleitoral, mas prevê-se uma séria tentativa de hegemonização rotativa pela concentração de círculos e óbvio prejudicar de minorias que seriam desta forma excluídas de assento parlamentar. Noutros tempos, a isto chamava-se chapelada eleitoral e o exemplo da 1º república é eloquente.
Como facilmente se depreende, todas estas questões se resumem apenas a pontuais medidas paliativas que garantam o perfeito imobilismo obtido pelas sucessivas revisões constitucionais. O problema reside como sempre, na inequívoca - e até muitas vezes orgulhosamente assumida - filiação partidária do Chefe do Estado. Razão têm todos os primeiros ministros, quando desconfiam das verdadeiras intenções, ou da reserva mental do p.r., especialmente se este não pertencer ao seu partido. Os exemplos históricos dos contenciosos verificados durante os mandatos de Soares, Sampaio e Cavaco, apontam para o prejuízo que significa para Portugal, o uso do abusivo poder de dissolução que afinal, garante apenas a solvência da camarilha que circunda o gabinete presidencial. Fossem os actuais poderes do Chefe do Estado reservados para a pessoa do Rei de Portugal, então poderíamos confiar plenamente no maduro raciocínio e ponderação do excepcional acto que é a chamada "bomba atómica" constitucional, ou seja, a dissolução. É que a perfeita independência partidária, equidade no julgamento e sentir daquilo que é o verdadeiro e perene interesse nacional - ou colectivo, como preferirmos -, só pode ser propriedade de quem não depende de momentâneos contextos, modas ou de campanhas organizadas por poderes económicos que em princípio, deverão ser alheios ao condicionamento da formação dos gabinetes governamentais. E se a isto acrescentarmos o ponderoso reflexo do Conselho de Estado, temos as ferramentas ideais que permitem o equilíbrio do regime constitucional.
Com tantos juízes, procuradores, altos representantes da república e governadores chancelados por nomeação presidencial, governamental ou até partidária - num constante Tratado de Tordesilhas de partilha de sinecuras - cai assim definitivamente por terra, o extemporâneo e ridículo argumento da necessária elegibilidade de todos os detentores dos cargos públicos que como vimos, são invariavelmente nomeados bem longe das urnas do voto popular. A cortina de fumo do argumento urneiro é apenas isto e nada mais.
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