quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Carta de Fernando Pessoa ao presidente da república

Ultima foto (1935)

[Ao Presidente da República]

Com uma de duas qualidades – de duas só – se afirma um homem chefe de um povo, comanda um homem a massa indistinta e informe da nação. São elas o poder oratório e o prestígio militar – a eloquência de um António José de Almeida, a bravura de um Sidónio Pais. Às qualidades de inteligência, por grande que seja, de trabalho, por intenso que possa ser, a essas e a outras, de menor relevo público, como a honestidade, a virtude, o patriotismo, encolhe o povo os ombros, sem sequer pensar em respeitá-las; deixa-as na sombra a que naturalmente pertencem. Convém não esquecer, Senhor Presidente, que uma nação é um teatro e um governo um palco: ninguém comanda a alma de um povo se não tiver nascido, ou se não se fizer, actor. É essa a razão do prestígio orgânico da monarquia: o rei nasce no palco e é educado, desde a infância, para estar e representar nele.
Pode a eloquência ser oca, a bravura postiça: o caso é que uma se ouça e a outra se veja.
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Quer isto dizer, Senhor Presidente, que uma nação haja sempre de ser governada por chefes acentuadamente tais, que não haja período em que possam estar no poder os inteligentes sem aura e os patriotas sem prestígio? Não é o que quer dizer. O que porém quer dizer é que esse prestígio de chefe, desnecessário muitas vezes num governo de época normal, é indispensável num governo de época anormal, imprescindível num governo de autoridade. O que porém quer dizer é que o Prof. Salazar, não tendo tal prestígio, nem maneira de o ter, se deixou investir da aparência dele. É a sua túnica de Nessus.
Ninguém pode legitimamente culpar o actual Presidente do Conselho de não ter qualidades que não tem; pode legitimamente fazer-se de, não tendo tais qualidades, pretender tê-las e ter-se colocado em situação de, não podendo tê-las, ser todavia necessário que as tenha.
Culpa-se o Prof. Salazar disto: de ser incompetente para o cargo que assumiu.
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Um homem que, tendo que presidir a uma distribuição de prémios literários, abre a sessão com um discurso em que enxovalha todos os escritores portugueses – muitos deles seus superiores intelectuais – com a fútil imposição de «directrizes» que ninguém lhe pediu nem pediria, e que, pedidas que fossem, ninguém poderia aceitar por não compreender quais sejam – esse homem, que assim, com uma inabilidade de aldeão letrado, de um só golpe afastou de si o resto da inteligência portuguesa que ainda o olhava com uma benevolência, já um pouco impaciente, e uma tolerância, já vagamente desdenhosa, não tem sequer o prestígio limitado que lhe permita governar uma república aristocrática, a aceitação de uma minoria que, ainda que praticamente inútil, fosse teoricamente inteligente.
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Destinado assim naturalmente por Deus para executor de ideias de outrem, visto que as não tem próprias, de secretário de prestígio alheio, porque o não pode conquistar seu, o Prof. Salazar quis alçar-se, ou deixou que o quisessem alçar, a um pedestal onde mal se acomoda, a um trono onde não sabe como sentar-se. Não conseguiram os titãs, e eram titãs, escalar o Olimpo; como o conseguirão os anões, condenados, para que possam parecer grandes, ao desequilíbrio constante das andas que lhes ataram às pernas?
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Isto não é ser mestre, nem ser chefe é: é ser exemplo. Mas igual exemplo nos dão e sempre deram as formigas e as abelhas – cujo Estado Velho está absolutamente bem organizado, e em princípios antiliberais a que ninguém desobedece –, sem que seja preciso promover a Abelha Rainha à posição, presentemente mais que régia, da Presidência do Conselho.
Realmente é um Estado Novo, porque este estado de coisas nunca antes se viu.
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Chegámos a isto, Senhor Presidente: passou a época da desordem e da má administração; temos boa administração e ordem. E não há nenhum de nós que não tenha saudades da desordem e da má administração. Não sabíamos que a ordem nas ruas, que as estradas, as pontes e as esquadras tinham que ser compradas por tão alto preço – a da venda a retalho da alma portuguesa.
Tem todas as qualidades periféricas de chefe. Falta-lhe a principal – que é ser chefe.


Fernando Pessoa, «Contra Salazar», selecção, introdução e notas de António Apolinário Lourenço, Angelus Novus Editora, Coimbra, 2008, pp. 137-140.

Notas para uma carta, nunca enviada, que é a manifestação da indignação face ao discurso de Salazar, a 21 de Fevereiro de 1935, na cerimónia de entrega dos prémios literários do Secretariado de Propaganda Nacional, que distinguiu em exequo a obra «Mensagem». Fernando Pessoa viria a falecer a 30 de Novembro de 1935.


Esta carta não revela Fernando Pessoa no seu melhor. Apresenta uma retórica brilhante mas considerar que os "chefes" ou são "militares" ou "oratórios" e que Salazar não era uma coisa nem outra, é uma visão muito limitada dos anos 30, do que deve ser a representação nacional. Para elogiar Antonio José de Almeida como "chefe", é preciso estar muito desiludido com o regime e mesmo a vida, como comprova a morte de Fernando Pessoa por cirrose, meses depois . Almeida fora homem do PRP encarregado no Verão de 1907, de estabelecer o programa do Regicídio com os carbonarios anarquistas na LOja Montanha. Após o sucesso do 5 de Outubro tornou-se um dos mais evidentes exemplos do "patriota estúpido", cheio de oratória em prol de Portugal mas com uma ignorância completa do que o país necessitava em termos sociais e económicos, um burguês satisfeito com o seu discurso mas que não se importava que o povo passasse fome. Um exemplo típico dos "apóstolos republicanos" cujo entusiasmo ia a par com o cretinismo político, tal como Magalhães Lima. E depois Sidónio, cheio de contradições, sempre a hesitar entre apoiar os monárquicos que o ajudaram a consolidar o poder e apoiar os republicanos que o tinham incitado ao golpe de Estado, sobretudo Brito Camacho a cujo partido pertencia. É ainda de ter em conta que Almeida e Sidónio pertenciam ao Grande Oriente e nesta fase Pessoa está revoltado com a Lei de proibição das Associações secretas (vg. Maçonaria) proposta pelo deputado José de Castro e aceite pela Assembleia Nacional quando na realidade Salazar estabelecera, por detrás, um acordo com o Grande Oriente, via Albino dos Reis, para não existir senão actividade clandestina do GOL.. Malhas que o império tece... Não publicando a carta, Fernando Pessoa mostrou que não se identificava com ela. MCH

1 comentário:

Unknown disse...

Certíssimo! Mas um mérito importa reconhecer a António José de Almeida: foi o único a conseguir a proeza de cumprir um mandato inteirinho, quatro anos!!!, na Presidência da República...