segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

a "obra social " da I República

Conforme se avança pela terceira década do século XX, o apelo á caridade e solidariedade particulares vai-se tornando mais insistente, ao mesmo tempo que se evidenciam os erros e lacunas da acção providente do Estado republicano, que não conseguira fazer face aos múltiplos problemas relacionados com a obra de Assistência Social assumida pela I República em Portugal.

Em 1922 a ocupação dos «...pequenitos que revolvem os barris de lixo em procura de alguns restos para comer. (...)», como se afirma no Século, acrescentando-se ainda: «Há crianças que tomaram como profissão rebuscar no entulho do Aterro qualquer trapo, para aproveitar como agasalho, ou migalha de comer, para se enganarem, como alimento!» (1922- O Século de 11/02/1922)

José de Castro (maçon e ilustre republicano, desde 1881), que era de opinião que essa multidão de crianças rotas «... quase nuas algumas, fumando... apresentam ares grosseiros e agressivos, não de crianças mas de bandidos...» (17/3/1922, O Século).



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«É PRECISO LIMPAR LISBOA»

Gostaríamos de realçar a ideia de que os indigentes constituíam de facto uma categoría social diferente, quer pelo seu perfil físico e psicológico quer pela sua conduta na vivência do quotidiano lisboeta.
A rua era o meio a que pertenciam muitos desses individuos, que viviam da mendicidade ou de expedientes que, mais tarde ou mais cedo, Ihes custava a liberdade tão apreciada.
Alguns, porém, ansiavam a protecção do Estado, que lhes era facultada através do internamento nos estabelecimentos de assistência ou da atribuicão de outro tipo de ajuda de carácter mais provisório, como as esmolas, os bodos e outras prestações em géneros, provenientes quer de pessoas individuais quer de organismos e instituições particulares e oficiais.
Conforme se avança pela terceira década do século XX, o apelo á caridade e solidariedade particulares vai-se tornando mais insistente, ao mesmo tempo que se evidenciam os erros e lacunas da acção providente do Estado republicano, que não conseguirá fazer face aos múltiplos problemas relacionados com a obra de Assistência Social assumida pela I República em Portugal.
Entretanto, as ruas da capital continuam enxameadas de mendigos, como nos faz crer a noticia divulgada pelo Século em 1 de Abril de 1931: «Vagueiam, teimosos como as vespas persistentes como os moscardos, impertinentes como os mais insaciáveis parásitas, pelas suas rúas e praças principais, os pedintes de profissão (...). Toda a rua do Ouro, a rúa Augusta, o Rossio, o Chiado e as artérias principais da cidade e do comercio e das elegâncias nao passam de constantes exposições de chagas, de pústulas, de trapos, de gangrenas (...), de braços podres...»

O «RETRATO» DO INDIGENTE E DO SEU MEIO

Os rostos das crianças e das mulheres sao adjectivados de magros, pálidos e macilentos, além de sujos e «ranhosos», no caso das crianças. Outros epítetos usados para os menores vadios eram; «chagados», «mazelentos», «maltrapilhos e descalços», consideravam-nos, aínda, «farrapos humanos», que nada tinham de alma, so instintos «...de pequenas feras», «bárbaros», «aves de rapina» (1922-O Século 15/5/1922)]
Os homens apresentavam-se com grandes barbas, mal cuidadas, sujas e reflectindo o desmazelo próprio de quem tem outras preocupações prioritarias.
No vestuario — que muitas vezes nao passava de um monte de andrajos — destacam-se algumas peças susceptíveis de distinguir os dois sexos: o gibáo, ou o velho capote militar que alguns homens envergavam, e o xaile de tons escuros com que se cobrem as mulheres, servindo por vezes também de cobertor aos filhos que se aninhavam junto às mães para se protegerem dos rigores do clima.

(...) Em casos mais extremos, e sobretudo na intimidade das suas áreas residenciáis — nos becos e nos patios — as enancas podiam ser vistas semi-nuas, numa promiscuidade com a térra e a lama que ladeavam as suas casas.

Outra situação que chocava o olhar do observador comum era a ocupação dos «...pequenitos que revolvem os barris de lixo em procura de alguns restos para comer. (...)», como se afirma no Século, acrescentando-se ainda: «Há crianças que tomaram como profissão rebuscar no entulho do Aterro qualquer trapo, para aproveitar como agasalho, ou migalha de comer, para se enganarem, como alimento!» (1922- O Século de 11/02/1922)

A "Batalha" (já referida no blogue) publicou alguns artigos sob o título genérico «O paraizo Burgués», que denunciavam certos casos de miséria mais flagrantes, como a que se vivia no Casal Ventoso, povoado de gente com «(...) rostos escaveirados, expressóes bestializadas, encardidas nas intempéries ocultas, sob uma camada viscosa de imundície. Tudo neles é negro. (...) Marcham como sapos, deslizando acocorados, hábito que lhes ficou da continua existência de toupeiras agachadas sobre o lixo ou curvadas para deslizarem dentro das suas barracas de tectos baixos como tocas (...)» (1925-A Batalha 25/3/1925).

Mas nem todos os observadores têm uma apreciação tão benevolente dessa miséria exposta e atrevida. O Século publica um depoimento de uma figura política, antigo ministro da Marinha, José de Castro (maçon e ilustre republicano, desde 1881), que era de opinião que essa multidão de crianças rotas «... quase nuas algumas, fumando... apresentam ares grosseiros e agressivos, não de crianças mas de bandidos...» (17/3/1922, O Século).

As suas atitudes de irreverência eram mal entendidas pela autoridade policial que marcava e perseguia esses miúdos vadios, que se divertiam a «tourear um polícia», conforme a gíria da época.
As observações a que foram sujeitos os menores que passaram pela Tutoria da Infância permitiram-nos destacar algumas características mais comuns nestas crianças, como sejam a instabilidade, a insubmissão, a indisciplina e um comportamento profundamente marcado por automatismos herdados da sua experiência de vida da rua.

A revista deste instituto de assistência aos menores (Abril de 1915) vai mais longe, apontando como «qualidades peculiares do vadio» ser dissimulado, reservado, instável e por vezes adulador.
Os velhos, pelo contrário, carregavam tristeza no seu olhar, deixando transparecer o peso da humilhação a que se sentiam sujeitos, o que contribuía para lhes dar uma aparência soturna.

A determinação do Estado Novo em combater a mendicidade que ameaçava a tranquilidade e ordem públicas ficou desde logo expressa no editorial de Janeiro de 1931 do Boletim do Governo Civil, que anunciava inequivocamente: «É preciso limpar Lisboa.» (2O sangue e a rua. Elementos para uma antropologia da violência em Portugal (1926-1946),p. 209, Lisboa, Publicações D. Quixote, 1989)

Em jeito de conclusão, registámos que, ao longo de todo o período estudado, a política de repressão da mendicidade teve um destaque igual, ou mesmo superior, ao da assistência social facultada aos indigentes. Este facto induz uma questão, que julgamos pertinente deixar como remate da matéria exposta:
— As medidas tomadas pelos governos vigentes durante o 1.° terço do século XX teriam sido as mais correctas e indicadas para sanar esse mal, que já era vulgarmente designado por«cancro social»?

Maria Fátima M. Pinto, Mestra em Historia do séc. XX/FCSH/Univ. Nova de Lisboa

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