terça-feira, 30 de março de 2010

«CARTA A ANTÓNIO ENES SOBRE AS FARRONCAS DOS PORTUGUESES»

Caríssimo
(...) V. próprio teve a oportunidade de assistir (...) às cenas grotescas que o ultimato provocou: à procissão que foi pôr crepes na estátua de Camões, aos caixeiros da Baixa que se queriam bater com Salisbury, à campanha contra os produtos ingleses; à subscrição popular para o cruzador de refugo que iria destruir a esquadra mais poderosa do mundo pela simples virtude da tesura portuguesa (...). Calculo as vergonhas por que V. passou.
Eu, no meu tempo, passei por outras: pelas tristíssimas figuras da "defesa" da India, pelo "orgulhosamente sós" do Prof. Salazar, pela exótica exemplaridade da descolonização (...). O facto, meu caro, é que nada mudou. Ao fim de um século, de um século inteiro, repare bem, continuamos com enormes farroncas e sem qualquer cabeça.
(...)
Há, no entanto, factos que não posso ocultar-lhe, como a recente polémica suscitada por um discurso do Dr. Mário Soares, o Presidente da República (é verdade, eles lá conseguiram) entre o dito Presidente, o Partido Regenerador, que se chama hoje PPD, e o Partido Progressista, que se chama hoje PS.
(...)
O Dr. Mário Soares proclamou num discurso solene que Portugal era perfeitamente capaz de "se afirmar no mundo como nação desenvolvida e de vanguarda" e que, "pela primeira vez, desde a época aúrea dos Descobrimentos" estava "em condições de marcar o futuro da Humanidade". (...) Não se espante. O Presidente da República, coitado, sobretudo quando se ocupa de ciência e de cultura, é atreito à megalomania patriótica.
(...)
A soberania em questão (...) existe apenas no espírito fantasioso do Sr. Presidente da República (...) Não temos qualquer independência ou poder económico. Não temos dinheiro nem gente qualificada para nos desenvolver. (...) Desde 1974 que não temos império (...) temos duas fragatas e uma dúzia de aviões, que não voam por falta de gasolina. E temos, na Europa e no mundo, a exaltante missão politica de fazer recados e não arranjar sarilhos (...).
(23.06.1990).
in Vasco Pulido Valente, «Esta Ditosa Pátria», ed. Relógio d'Água, pág. 28.

9 comentários:

Nuno Castelo-Branco disse...

Acertou em cheio.

Filipa V. Jardim disse...

João Afonso,

A missão continua: Não arranjar sarilhos. fazer recados já não é preciso,a internet dá uma ajudinha.

João Afonso Machado disse...

É animador, não é? E exultante, mesmo...

Francisco RB disse...

Oh mores, o costumes, oh Portugal este, que te deixas-te cair...
Oh república decadente e decrépita, oh povo imortal que assim te deixas governar...
oh portugueses que vos deixais guiar por um soáres!!!

Anónimo disse...

Parece que agora estamos menos mal, do ponto de vista militar.
Mas estamos muito pior do ponto de vista alimentar.

M. Figueira

Nuno Castelo-Branco disse...

Gosto imenso do termo farroncas. Soa a bolachas de araruta, ou a farófias. Se isso se come, não sei..., mas que dá de comer a muita gente "por aí", lá isso dá.

Nuno Castelo-Branco disse...

Já agora, não percam este texto de hoje, no Combustões. Aqui deixo um excerto:

"Os porcos de ontem tinham uma obsessão: destruir os tronos, todos os tronos. Os porcos de hoje têm uma obsessão: alcandorarem-se a tronos de ouro maciço e pedras rutilantes. Para isso, para que ninguém tenha a veleidade da comparação, querem ver desaparecidos os tronos de outrora, não querem ser confrontados com verdadeiros reis, verdadeiros príncipes e velhos ecos sociais da ordem antiga. Tudo tem de desaparecer para, sós e sem acareação, constituirem a nova realeza dos pneus, a nova aristocracia dos cartões de crédito, os príncipes da banca, dos supermercados, dos centros comerciais, tudo recoberto com ONG's, humanitarismo, bolsas e prémios, galardões e publicidade. Antes, os velhos tronos falavam de literatura, de história, de espiritualidades: hoje, os novos tronos falam de "ilhas de sonho", marcas de charutos, "vinhos de reserva", do novo Maserati, do golf, de Las Vegas, de Macau e de jactos para Executive Flyers."

João Afonso Machado disse...

Caro Nuno:

Esse texto do Combustões promete. Já agora deixe aí o link. Há-de ter sido escrito por alguém que não vai à caça nem de gravata nem de saltos altos...

Nuno Castelo-Branco disse...

João Afonso, aqui deixo o link:

http://combustoes.blogspot.com/2010/03/eles-estao-entre-nos.html