domingo, 25 de abril de 2010

Os corvos


Portugal somos todos nós, portugueses, e a nossa vontade de fugir à mediocridade instalada. De rumar, enfim, ao futuro, longe da intriga, do conflitozinho, de todos os escandalos que nos ocupam, à míngua de ideais e de horizontes.
É tantas vezes junto ao mais belo do nosso património natural que o encontro surge. O encontro connosco, e com a ausência de vozes que é a eternidade das ondas desfazendo-se na falésia e a fala dos tons do sol poente. Creio não haver então quem não se depare - e saúde e converse - com o seu Deus, o Deus de cada um, ao seu modo e na sua liberdade própria, visto ninguém ser propriedade de outrém.
Por exemplo, aqui no Cabo Carvoeiro, com essa monumental rocha, a Nau dos Corvos, mesmo diante de nós e as Berlengas lá longe.
Mas jamais na "República dos Corvos" (Cardoso Pires), como claramente se percebe: «Confusão, uma porra. O Corvo, que é taberneiro por convivência com o dono, conhece todas as velhacarias do vinho e como, ainda por cima, é ateu praticante, a conversa do Santo Vicente e dos corvos de Lisboa fá-lo virar as costas, enojado. (...) Em frente, no largo do hospital, passa uma freira a levantar uma revoada de pombas. Como uma bruxa imaculada a cavalo numa vassora, pensa o corvo. E abre o bico para o ar, enfastiado. Enfastiado ou a bocejar?».

9 comentários:

Filipa V. Jardim disse...

João Afonso,

Muito mais bonita a sua Nau dos Corvos do que República de Cardoso Pires. Esqueceu-se de referir que a fotografia é de autor...linda!

João Afonso Machado disse...

Obrigado Filipa. Eu també. gosto mais da Nau dos Corvos. Sobre ela devia ter escrito M. de Sá Carneiro:
um pouco mais de longitude e era o Minho.
A Nau dos Corvos devia ser minhota! As Berlengas ainda assim são dispensáveis. Temos a Ilha dos Amores.

O Faroleiro disse...

"O reino naquela época tremia de frio e de dificuldades. Tinha-se deslocado para a beira-mar, não se sabe bem porquê mas supõe-se: fome. A fome vinha do interior e varria tudo para o oceano.
Nesta leva desgarrada , escapavam os camponeses, que tinham a barriga curtida, eram cardos,[...] fome para eles era o pão de cada dia.
[...] Uma vez ali, ou entregavam o corpo aos caranguejos ou faziam como o mexilhão: pé na rocha e força contra a maré. Daí o nome de Reino do Mexilhão que lhes pôs a geografia em homenagem (homenagem?) a esse marisco mais que todos humilde, só tripa e casca.

"QUANDO O MAR BATE NA ROCHA QUEM SE LIXA É O MEXILHÃO ""

José Cardoso Pires em "Dinossauro Excelentíssimo"

Tão contemporâneo como o era no dia em que foi escrito...
Entre corvos e mexilhões continua tudo na mesma, o corvo que é ateu e mau conselheiro, e o mexilhão agarrado à rocha a lutar contra a maré !

João Afonso Machado disse...

Tem razão meu caro. Por isso escrevi - de minha lavra - temos de olhar agora para o horizonte, onde está o futuro. Com todos os ensinamentos colhidos no passado, que sempre poderão da ma ajudazita paea que não andemos a repetir erros.
Sabe como é: à primeira quem quer cai; à segnda só cai quem quer.
Uma boa semana de trabalho para si.

Lurdes Gonçalves Pereira disse...

Sr. Dr. João Machado, é muito verdade quando fala da Natureza como propiciadora de encontros mágicos e tamanhos. Connosco próprios e com a Transcendência. Mas há muito bons espíritos q passam por esta vida " como cão por vinha vindimada" e negligenciam, por insensibilidade e sabemos bem mais o quê..., esse olhar profundo e reflexivo no tal "espelho", q pode ser, como no caso q apresenta, essa obra natural imensa da natureza q é a nau dos Corvos. Muito a este propósito, passo aqui algo semelhante q registei nos meus "Fragmentos", há alguns meses, aquando de um similar encontro com a vastidão do espaço aberto. Não traduzo porque presumo q não seja necessário fazê-lo aqui:
Hic et nunc

“ No doubt, the quietness and solitude the countryside can offer you, giving the opportunity to listen to the immensities of the sky, which in its apparent monotony is never the same, are effectively good companions for interior dialogues.
The awareness of your both philosophical and spiritual human condition may be a requirement if you want to achieve consistent results of such an approach to your inner world. Whatever the emerging tone may reflect…
But one can always try to be simply led by the greatness of Mother Nature as well.
Greatness in the most simple natural forms and sounds.
Adding to this an agreeable summer temperature and the fresh air in a good shadow, then the moment can be absolutely divine…”

Lurdes Gonçalves Pereira disse...

Ainda em relação ao q fala sobre o escapar à mediocridade instalada, Sr. Dr João Afonso, essa remete-me para "O Labirinto da Saudade" do pensador esquerdista mas de grande valor, Eduardo Lourenço e a sua perspicaz análise à problemática do "ser português". Isso está-nos no sangue, faz parte da mentalidade colectiva, às vezes pode até acabar por ser uma virtude nacional, se soubermos ser irónicos. A intriga, o conflitozinho são tão portugueses q sem isso ficaríamos mais pobres. Basta ver a outra face da moeda: dão pano para mangas a escritores q sabem agarrar este "pitoresco" da sociedade portuguesa. Para nosso deleite. Mas às vezes as coisas não são tão poéticas, eu sei.
Uma boa semana para o Sr.Dr. João Afonso, espero q a saborear o sucesso na Nazaré...e a presentear-nos com os seus textos.

Lurdes Gonçalves Pereira disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
João Afonso Machado disse...

Sra D. Lurdes:
Fez muito bem em referir Eduardo Lourenço. No seu patamar de pensamento, creio que já não há esquerdas nem direitas. Há apenas rigor, «cabeça fria» e Portugal no pensamento.
Dele só podemos esperar ponderação e moderação. Com toda a vantagem para o que aqui tratamos: Portugal.

Lurdes Gonçalves Pereira disse...

Subscrevo inteiramente estas suas últimas palavras, Sr. Dr João Afonso. Mas não é para todos esse patamar de pensamento: ou por simples incapacidade e falta de educação intelectual, ou muito frequentemente, por aquela mesquinhez de espírito q faz prevalecer o egoísmo das ideias, o individualismo, em detrimento de valores mais altos. E também porque nem sempre o jogo de ideias requer tal nível e não é esse o nosso papel. Mas é um recurso valioso para uma discussão séria.
E também o Sr. Dr. João Afonso fez muito bem em lembrar o objecto último tratado aqui: Portugal. De vez em quando convém ter isso presente...