Por António Simões:
Nasceu «exposto na roda», eufemismo usado para bebés abandonados. Mal entrou no Parlamento, Afonso Costa escreveu carta à mulher a dizer: «já comecei a guinchar» - e logo se falou dele como «deputado da peste». Andou ao soco, lutou à espada, pelos seus duelos passaram o Conde do Comité Olímpico e a guerra ao monopólio do inglês que levou a primeira bola de futebol para a Madeira... Foi em 1884. Nunca na política, o desafio, a batalha, se fizera assim. Sebastião de Magalhães Lima era já advogado ilustre – e, republicano e maçon, fundara O Século. Ao saber que por ocasião das eleições houvera na Madeira, onde Manuel de Arriaga era candidato, violenta carga policial – correu para o seu jornal e «tomando a pena» desafiou o rei D. Luís para pancada: «Eu não posso bater-me com os lacaios de vossa majestade, mas se vossa majestade tem nas veias o sangue quente dos seus avoengos, desça à rua e me encontrará um adversário». O impulso do sangue quente – levou-o a condenação a ferros no Limoeiro, outras vezes por lá passaria. Ah! E outra vez também se bateu em duelo ao sabre com Pinheiro Chagas, então director do Diário da Manhã, deixando-o ferido. Inspirado nesse espírito de Magalhães Lima, refinando-o, aguçando-o, radicalizando-o, entrou Afonso Costa na política. Polarizou paixões e ódios. Tornou-se ídolo de multidões – que o cunharam Pai da República. Outro tanto frenesim despertou em adversários e inimigos – que lhe chamaram Chefe de Calceteiros, Jacobino de Algodres, Conspirador Bolchevista, Mata-Frades. No Parlamento temiam-lhe o ardor e a ironia, o tiro mordaz, o sorriso perverso. Num ponto, todos concordam: sem ele, sem a sua coragem, o seu voluntarismo, a monarquia não teria caído quando caiu, como caiu. E Joaquim Vieira escreveu na sua Fotobiografia: «Pertence àquela pequena galeria de homens que passaram à História envoltos por lendas. Apologéticas e demonizadoras. Ora idealista e patriota. Ora ambicioso e sem escrúpulos. Ora democrata. Ora ditador. Chegou dele a dizer-se que batia na mãe...»Cabeça como «assador de castanhas»Segundo Oliveira Marques, «chegou ao mundo fraco, com escrófulas e achacado» - e sobreviver foi a sua primeira grande batalha. Ele, Afonso Augusto da Costa sempre disse ter nascido em São Tiago, Seia, a 6 de Março de 1871. E isso é certo – só que nesse dia no registo paroquial o único Afonso que aparece é Afonso Maria de Ligório, «exposto na roda» - eufemismo que então se usava para bebés abandonados à nascença. Ligório, dizia-se, lhe chamaram em homenagem a um arcebispo de Milão que protegia jesuítas. Sobre as suas origens nunca quis falar muito, disso fez mistério. De saúde débil, aos três anos dos médicos «deram-no como perdido» - por uma angina. Acabara de fazer 10 quando foi perfilhado por Sebastião Fernandes da Costa, advogado que deixara o Seminário de Coimbra e o «destino de padre» e que depois se envolvera em nebuloso relacionamento com Ana Augusta Pereira, «filha de uma tecedeira de Gouveia precocemente cega, a quem morrera o marido em consequência de perseguições do facínora João Brandão». É o nome dela que aparece, como mãe, no BI de Afonso Costa. Que de si próprio contaria: «Já de pequeno era bastante insubmisso: gostava muito de brincar com a água e de jogar a bilharda, o pião e ir aos ninhos, jogar a travar lutas com condiscípulos, estabelecer verdadeiras guerras de pedra com a garotada, ficando tantas vezes com a cabeça rachada, que se cortasse o cabelo à escovinha, ela faria lembrar um assador de castanhas». O «deputado da peste» a guincharAos 12 anos, mandaram-no estudar para a Guarda – brilhava nos estudos, dava nas vistas na sala de ginástica – e «nos pátios e nas ruas, improvisando ruidosas brincadeiras que não raro terminavam por batalhas e duelos, ora à pedra, ora ao soco. Não costumava recuar, nem desistir, e se levava muito dava sempre quanto podia». Assim continuou. Sempre. Para Coimbra foi, então, Afonso Costa estudar direito – e foi a contestação ao Ultimatum que o lançou, fulgurante, à política. Tinha 19 anos. Já doutorado, em 1900, com 29, tornou-se deputado. Ele, Paulo Falcão e Xavier Esteves foram os primeiros que o Partido Republicano teve. Eleitos pelo Porto. Surto de peste negra levara o governo de José Luciano de Castro a criar na cidade cordão sanitário formado por militares – despertando a ira popular, que o PRP aproveitou. Por isso (e não só...) lhes chamavam «os deputados da peste». No dia 19 de Junho de 1900, Poças Falcão, presidente da Câmara de Deputados, deu-lhe, inquieto, a palavra – pela primeira vez. No jornal O Norte, João Chagas escreveu: «Todos os olhares caem sobre o deputado do Porto, que começa a falar alto e no seu habitual tom de energia. Começa a ler, lentamente, como um juiz lê uma sentença, aquela formidável moção de ordem. O murmúrio, a princípio vago, vai aumentando. É a tempestade que quer rebentar. Mas Afonso Costa não lê: impõe. Quando ele conclui – porque conclui! – é um ah! de espanto!»O que Costa pedira ali – não era um pedido qualquer. Era um manifesto. O que ele pedira era que a substituição das instituições monárquicas - «por outras diferentes, de feição republicana, graças às quais o governo da Nação pertence à própria Nação e não a uma família, casta, grupo ou classe privilegiada e seus aderentes». Falcão cortou-lhe a palavra – e antes de abandonar a sala lançou, ainda mais provocador, em desafio: «A última partida há-de ser nossa». Chegou a casa – e escreveu carta à mulher, dizendo-lhe: «Já comecei a guinchar»! O primeiro até no... soco!O Novidades, diário... governamental, comentou assim a sua estreia parlamentar: «É dos três republicanos o de palavra mais correcta, mais espontânea, com modulações mais variadas. Dos três é o que sabe encontrar notas de originalidade e tem arrojos de expressão que revelam o orador de raça». E Oliveira Marques acabaria por dar ainda melhor recorte à sua virulência, à sua eficácia, anos depois: «Foi ele talvez o mais poderoso aríete na demolição do regime. Chegava a intervir nos debates diariamente, discursando, respondendo, interrompendo, requerendo, propondo». Num ápice se veria que não havia na monarquia deputado republicano mais turbulento, mais truculento, mais agitador. Quer pelas palavras, quer pelos actos. Em 1902, bateu-se ao soco com Sampaio Bruno – em plena Rua Sá da Bandeira, por o seu correligionário o ter acusado de «desleal republicano». Passados seis anos Afonso Costa deu dois murros a Martins de Carvalho, deputado franquista, em plenos Passos Perdidos – levando José de Castro, futuro ministro republicano, a exclamar: «Sempre o primeiro! O primeiro no parlamento, o primeiro no foro e até o primeiro no soco!». Adiantamentos para não pagarCorreu o tempo e D. Carlos continuou a intitular-se, pomposo, Rei de Portugal, d´Aquém e d´Além Mar em África, Senhor da Conquista e da Navegação da Etiópia, da Arábia, da Pérsia e da Índia – mas era o monarca de mais acanhados rendimentos em toda a Europa. Para os seus gastos, o orçamento de Estado atribuía-lhe 100 contos anuais – e 60 à rainha D. Amélia, outro tanto à rainha-mãe, D. Maria Pia, 20 ao Príncipe Real, D. Luís Filipe, 10 a infante D. Manuel e o mesmo a D. Afonso, irmão do rei de quem se dizia que não casava por falta de dote. Chamavam-lhe A Lista Civil – e todo esse dinheiro não bastava para sustentar o aparato do regime, conservar palácios, pagar viagens e cerimónias, queixava-se a Casa Real – e em segredo, continuava a pedir à Fazenda adiantamentos que nunca pagava. Aires de Ornelas, o ministro do futebolBernardino Machado, lente de Coimbra, eleito presidente do directório do Partido Republicano, ao desembarcar na estação do Rossio – tinha à sua espera multidão de apoiantes. Sobre eles carregou a polícia com violência – causando 70 feridos. O comandante da polícia revelou que Hintze o instruíra no sentido de «prevenir com antecedência os maiorais do Partido Republicano», de se absterem de «dar gritos subversivos», de se manifestarem «contra as instituições». Os jornais republicanos da manhã seguinte foram todos apreendidos «à ordem do Juízo de Instrução Criminal» - e até no Diário de Notícias, que era a «voz do ordeirismo», se lamentaram as «violências de déspota». Dois dias depois, D. Amélia foi a uma tourada no Campo Pequeno – e quando Afonso Costa entrou na praça largaram-se vivas à República e alguém contou que a rainha não contivera as lágrimas ao ver aquele frenesim, aquela algazarra, «tanta gente a virar as costas ao camarote real». Foi nesse cenário a rasgar-se no drama que a17 de Maio de 1906 se deu a demissão de Hintze Ribeiro – e assim se colocou ponto final no rotativismo que se iniciara em 1893, o seu último governo durara dois meses apenas. Face ao desprestígio dos dois principais partidos, o Progressista e o Regenerador, à queda sucessiva dos ministérios organizados ora por um, ora por outro, dois dias passados o rei chamou João Franco, chefe do Partido Regenerador-Liberal ao governo. Mal tomou posse prometeu «governar à inglesa, desenvolvendo a instrução e afastando-se do proteccionismo e do favoritismo reinantes na administração pública portuguesa». Amnistiou os crimes de abuso de liberdade de imprensa – e os amotinados dos cruzadores. O seu ministro da Justiça era Aires de Ornelas, que em 1888 participou no primeiro «ensaio» de futebol que se fez em Portugal Continental - na Parada, em Cascais, uma bola que Guilherme Pinto Basto trouxera de Inglaterra. Outros ilustres que então jogaram? Salvador Correia de Sá Benevides, o visconde de Asseca – oficial de engenharia militar, que depois se tornou oficial-mor da casa real e vedor de D. Manuel II. E Vasco de Sabugosa, conde de S- Lourenço – que na aclamação de D. Manuel II haveria de servir como alferes-mor do Reino, o pai o Conde de Sabugosa, mordomo-mor de D. Carlos, era o poeta distinto que fez parte dos Vencidos da Vida, a mãe a condessa de Murça, dama camarista da rainha D. Amélia. 8000 de défice, 4000 da Casa Real! Em Junho de 1906, o rei ordenou, por proposta de João Franco, a dissolução das Cortes, eleitas dois meses antes. Novas eleições se marcaram para 19 de Agosto – Franco ganhou-as e em Lisboa o Partido Republicano elegeu quatro deputados: António José de Almeida, Afonso Costa, Alexandre Braga e João de Menezes. O parlamento abriu em Setembro – e as primeiras sessões giraram em torno da questão da nacionalidade no indigitado Ministro da Fazenda: Ernesto Driesel Schroter, filho de austríacos. A explosão deu-se, logo depois, a 20 de Novembro. Quando Franco reconheceu em São Bento que o Ministério da Fazenda procedia, desde há vários anos, a «adiantamentos» de somas avultadas aos membros da família real. Era a primeira vez que um chefe de estado reconhecia as histórias que corriam pelos cafés em dichotes e lamúrias – que «dos oito mil contos de défice, quatro mil é a a Casa Real que os gasta», dizia-se. Expulso do Parlamento à... coronhada Em Novembro, Afonso Costa falou disso no Parlamento como «crime de peculato», agitou a câmara ao bradar: — É dinheiro arrancado ao pobre povo desgraçado, que o entrega com tanto suor e tantas lágrimas...E virando-se para João Franco incendiou ainda mais o cenário:— Ordena o povo que logo que esteja pago digo o Sr. Presidente do Conselho ao Rei: retire-se, Senhor, saia do país, para não ter de entrar numa prisão, em nome da lei! Com os deputados de pé, a sala a estoirar em burburinhos, frenesins e vozearias, Costa largou: — Por menos do que fez o Sr. D. Carlos rolou no cadafalso a cabeça de Luís XVI. Tomás de Mello Sampaio, o Presidente da Câmara de Deputados, exigiu-lhe que retirasse a ofensa ao Rei, Costa reiterou-a. Intimou-o a abandonar a sala, ele recusou sair. Entraram soldados da Guarda levaram Afonso Costa para os Passos Perdidos, à coronhada. Por um mês o suspenderam de deputado – e os jornais republicanos mantiveram a questão ao rubro, a ferro e fogo. O Diário Popular escreveu: «A ladroeira está proclamada». O Mundo promoveu o rei a «gatuno, insaciável por dinheiro», a «bandido e assassino». E A Luta revelou: «com o dinheiro dos contribuintes D. Carlos terá adquirido em 1902 dois prédios para instalar uma amante». Do dinheiro que o Estado lhe dava, D. Carlos retirava para seu «salário anual» quatro contos e meio. Oficial do exército ganhava então 700 mil réis – e os operários da Carris até 350 mil. Assinatura anual de telefone andava pelos 50 mil réis - e botas de futebol na Casa Senna pelos 6500 réis. Por par de sapatos de senhora cobravam-se 3200 réis – e por um barril de água ao domicílio 200 réis. Golpe para rei não dever nadaEm Abril de 1907, D. Carlos dissolveu o Parlamento - e numa carta a João Franco pôs, preto no branco: «São precisas obras e não palavras. De palavras, bem sabemos está o país farto». E, depois, numa entrevista ao jornal francês Le Temps, revelou: «Caminhávamos não sei para onde. Foi então que dei a João Franco os meios para governar. Fala-se da sua ditadura, mas os outros partidos, os que mais gritam, pediram-me também a ditadura. Para a conceber, exigia garantias de firmeza para levar as minhas ideias a bom fim. João Franco foi o homem que eu desejava».A 27 de Maio, o Partido Republicano fez grande comício na Avenida D. Amélia – que depois de 5 de Outubro passou a Avenida Almirante Reis. Votou-se moção de Brito Camacho em que se considera D. Carlos, ao aceitar a ditadura de João Franco, violava a constituição – e «lavrara, portanto, o termo da sua abdicação». Em funcionamento estava já o «gabinete negro», instituído pela Lei de Imprensa: delegados do Ministério Público censuravam tudo o que nos jornais pudesse incomodar o franquismo.Três meses depois, João Franco deu, enfim, conta certa aos Adiantamentos: 771 contos - e arranjou forma de liquidá-los num golpe contabilístico: 465 seriam pagos através do arrendamento de edifícios da Casa Real e 306 pela compra do iate Amélia. E foi assim que a Coroa ficou sem dever nada – e o Rei ainda viu a Lista Civil aumentada em 160 contos. Reacendeu-se, pois, o escândalo. Aquilino, a bomba e os comboiosEm ebulição andava a resistência republicana – e foi por essa altura que Lisboa se agitou com a notícia de que numa casa da Rua do Carrião, à Estrela, o médico Gonçalves Lopes e o comerciante Belmonte de Lemos foram «vítimas mortais da explosão de bombas que estavam a manipular». Com vida escapou Aquilino Ribeiro, então redactor de jornal republicano – que lá morava. A polícia levou-o, ferido, para a esquadra do Caminho Novo, acabaria por evadir-se dos calabouços. Eram os três da Carbonária - e logo Juiz de Instrução Criminal enviou à «Exma. Direcção dos Caminhos de Ferro do Estado, Serviço de Movimento», ofício que dizia: «evadiu-se calabouços da Polícia Civil de Lisboa o preso Aquilino Gomes Ribeiro, escritor, natural do Carregal, concelho de Sernancelhe e com os sinais seguintes: alto, magro, 22 anos, barba e cabelos crescidos de dois meses, cor pálida. Solicita-se a sua captura. O preso é da máxima responsabilidade, por ser acusado de um crime muito grave e por esse motivo se lhe recomenda a maior vigilância possível nos passageiros do seu comboio e se for reconhecido, deverá empregar todos os meios ao seu alcance para o deter tendo o máximo cuidado em o não deixar de novo evadir-se...»O caminho-de-ferro fora introduzido em Portugal em 1856. Em 1900 12 milhões de passageiros circularam nos comboios portugueses. Nos jornais, anunciavam-se excursões de comboio a Paris, ida e volta, por 45 mil réis em primeira classe e 35 mil réis em segunda – ou a Londres por 61 mil réis e 46 mil réis. O valor mais barato equivalia a mês e meio de ordenado de um funcionário público inferior, a semana e meia de salário para um chefe de repartição. De Sete Rios a Sintra, demorava-se duas horas... Na prisão, contra o que a carroça levavaPreso no Quartel de Cabeço de Bola, na sequência do falhanço do Golpe da Biblioteca de 28 de Janeiro de 1908, Afonso Costa escreveu a 30, no seu diário de cativeiro: «Pelas 10 horas da manhã levantei-me. Pouco depois, notei que na parada do quartel havia movimento desusado. Era uma carroça, que, segundo as conversas dos soldados perto do meu calabouço, vinha carregada de bombas apreendidas aos revolucionários! Podia lá ser! Mas a verdade é que, muitas ou poucas, sempre fui estranho e contrário a semelhante meio de luta, ainda mesmo só em defesa, por o considerar um perigo para quaisquer instituições, ainda as mais liberais. Não me parece que o problema das bombas tenha fácil solução. Esses desvairados, que um dia começaram a fabricá-las, arranjaram, pelo visto, prosélitos e imitadores. Esse terrível problema só se resolve governando bem, ou educando muito. Com a nossa miséria, com o nosso pavoroso analfabetismo e com os erros dos governantes, o mal agravar-se-à sempre, com perigo para todos nós, até para os que queremos novas instituições, em que esse meio de luta será tão perigoso como na monarquia...»Ponto assente, pois: Costa era contra a violência bombista, a lei da bala. E parecia que estava a advinhar: dois dias depois D. Carlos e D. Luís Filipe estavam mortos. Não, o regicídio não amansou a polémica dos Adiantamentos. Lá, na luta que ele adorava, que o empolgava, na Câmara dos Deputados, Afonso Costa voltou com ela à berlinda, acusou o Conde de Penha Garcia de como Ministro da Fazenda em 1905 ter dado 1,8 milhões de réis ao Infante D. Afonso e, provocador, largou: - Se os republicanos tivessem sabido mais cedo dos aidantamentos não havia já monárquicos em Portugal. Tumultos de novo – mais uma sessão suspensa. Carta dramática, braço a sangrar...Para duelo à espada francesa Afonso Costa o desafiou. Marcaram-no para 14 de Julho de 1908, na estrada da Ameixoeira, em Lisboa. Antes de para lá partir, Costa escreveu a Bernardino Machado carta em tom trágico: «Vou tranquilo para este lance. Se for fisicamente vencido, o meu sangue regará a terra sagrada da Pátria, e mais um passo se terá dado para a República. Bato-me pela nossa causa e, por isso, quando a sorte me seja pessoalmente adversa, convido-o, a si em nome de todo o nosso Partido, a dar à minha memória a compensação de uma vitória próxima».Sobressalto também em torno dos monárquicos - que temiam que se Costa fosse mortalmente ferido e os apoiantes o transformassem em mártir, mais um rastilho para a revolução. Houve quem afiançasse que foi por isso que o Conde de Penha Garcia, muito melhor esgrimista que Costa, se limitara, com a sua perícia, a atingi-lo, subtil, apenas num braço, que deixou a sangrar suave... Conde no COI mesmo com RepúblicaNo ano seguinte, em 1909, o Conde de Penha Garcia subiu à presidência da Sociedade Promotora de Educação Física, embrião do Comité Olímpico de Portugal - que promoveu os primeiros Jogos Olímpicos Nacionais. E saltou para delegado permanente de Portugal no Comité Olímpico Internacional, lugar que manteve mesmo quando, desfeita a monarquia, se exilou em Genebra. Nasceu no Fundão em 1872, filho de um grande proprietário da província da Beira Baixa, Presidente da Câmara, governador civil, presidente da Junta Geral de Castelo Branco, deputado em várias legislaturas e par do Reino. Depois de se formar em direito em Coimbra - em 1892 José Capelo Franco Frazão foi para Paris frequentar a École Livre des Sciences Politiques, onde se formara Pierre de Coubertin, o refundador dos Jogos Olímpicos. Mal regressou a Lisboa em 1895, ajudou a fundar a União Velocipédica de Portugal, tornou-se presidente do Centro Nacional de Esgrima, foi campeão de espada, iniciou actividade profissional na área do Direito, no escritório de Veiga Beirão – e dois anos depois filiou-se no Partido Progressista. A deputado chegou em 1898, eleito pelos territórios coloniais de Macau e Timor. Em 1900, D. Carlos atribuiu-lhe o título de conde de Penha Garcia – e quando a monarquia caiu, em 1910, era ele o presidente da Câmara dos Deputados. Hinton, o da primeira bola na MadeiraNão foi apenas contra o Conde de Penha Garcia que Afonso Costa lutou, audaz, à espada. Outro duelo travou – quando a monarquia estava já em estertor. Largos anos antes, em 1875, no largo da Achada, na Camacha, Harry Hinton organizou o primeiro jogo de futebol que em Portugal se fez – com bola que trouxera de Londres, onde estudava. O pai fora para a ilha tratar de doença, fundou a fábrica de açúcar de cana do Torreão, lá ficou. Harry cedo se dedicou ao «sport»: cricket, natação, ténis, tiro e pesca, em tudo foi ás. Epidemia de filoxera atacou em 1895 a Madeira, para lhe minimizar os efeitos o governo fixou por cinco anos o preço e as condições de importação de melaço, açúcar e álcool, concedendo mão-cheia de regalias alfandegárias. Em 1903, a Hinton & Sons que monopolizava o negócio na ilha pretendeu que o Estado lhe mantivesse os privilégios por mais 15 anos. Não o conseguiu de imediato - conseguiu-o, contudo, no orçamento de 1904. Cinco anos volvidos, o governo de Campos Henriques apontou para novo regulamento, Hinton ameaçou: se se mudasse o quadro exigiria indemnização de 673 mil libras. No impasse se foi ficando... Até que a 21 de Abril de 1910, Afonso Costa, no seu jeito incendiário, de nunca ter a discussão em anemia, revelou que ia levar a São Bento «cartas altamente comprometedoras» a propósito da Questão Hinton – e nesse dia a câmara de deputados não funcionou por falta de quórum. Prometeu lê-las na sessão seguinte. A que o governo faltou, «numa enormíssima prova de cobardia moral», alguém escreveu. As «cartas da polémica» eram de D. Fernando Serpa Pimentel, comandante do D. Amélia. Conhecera Harry Hinton a bordo do iate – quando ele por lá andava conviva de D. Carlos, isso logo se soube. Temendo que a sua leitura espalhasse ainda mais a arruaça pelo parlamento (e não só...) D. Manuel II publicou de imediato decreto encerrando as Cortes. Caíram mais achas na fogueira - o que só depois se saberia é que afinal as cartas não eram tão comprometedoras como Costa insinuara, mas não deixaram de acelerar o desejo de que a República acabasse de vez com o «regabofe da monarquia». Entre muros, duelo que Costa ganhouAfonso de Albuquerque escreveu em O Liberal artigo contra Afonso Costa, a título puxou: «Mentira, traição, calúnia, ladroeira». Acusava-o do roubo das cartas, de ser «a vergonha do parlamento, da advocacia, do partido republicano e da pátria». E logo Costa o desafiou para duelo à espada. Não se fez na via pública, como o de Penha Garcia - escondeu-se por trás dos muros altos da Quinta dos Loureiros, em Benfica. Venceu-o, atingindo Albuquerque no peito, deixando-lhe corte profundo, a sangrar. Afonso Costa aprendera esgrima na classe que Veiga Ventura montou na Penitenciária de Lisboa, Norton de Matos era um dos seus companheiros de treino, e sobre esse seu jeito escreveu Rocha Martins: «era bom esgrimista apesar de gaucher» - e outros duelos deixou pelas «pendências» com Augusto Forjaz, Teixeira de Vasconcelos e Pinheiro Chagas.
01:11 - 15-02-2010
3 comentários:
Caro Daniel:
Freud não teria dificulades em explicar a vida de A. Costa a partir das circunstâncias do seu nascimento. Afinal - um exposto! Odiando a sociedade como tantos ex-seminaritas são depois os mais acintosos ateus.
Afonso Costa foi um politico detestado por monárquicos, na Monarquia, e por republicanos na República.
Acima de tudo, foi um déspota, alucinado, que nunca olhou a meios para aingir os fins. Sobretudo, o fim de mandar.
Vamos procurar algo de Brito Camacho ou do Anº José de Almeida, a confirmá-lo.
E contudo, este texto presta-se a interpretações dúbias. Diria até que lhe faz "fosquinhas" à memória.
Quais "fosquinhas", Nuno?
O Costa era má rês sempre foi e ponto final. O texto revela isso muito bem. Se o homem o homem era agressivo, levou com as cicratizes devidas.
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